Nos filmes de François Truffaut protagonizados pelo seu alterego, o ícone personagem Antoine Doinel, deixava explícito que na vida cotidiana, eventos comuns e banais se transformam em situações fantásticas. No caso do libanês O Insulto, indicado a filme estrangeiro deste ano no Oscar, uma ofensa ordinária entre duas pessoas, ganha proporções assustadoras e realça a importância das discussões sobre como a intolerância é o principal mal-estar do mundo real e virtual dos tempos atuais.

Na trama, o libanês cristão Toni (Adel Karam, que transita muito bem entre o amor e ódio no coração do público). Entre assistir os discursos do líder do partido que clama pela deportação dos palestinos, Toni cuida de uma oficina de automóveis ao lado da esposa grávida, Shirine (Rita Hayek). Durante um reparo na infraestrutura local, o libanês se desentende por causa de uma calha com o palestino Yasser (Kamel El Basha, que ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza do ano passado pelo filme) e o trata asperamente. Yasser profere um xingamento e a partir daí o pequeno incidente cotidiano tomará grandes proporções, mexendo com diversas feridas políticas e religiosas de um país rachado pela guerra civil.

O Insulto tem como grande pilar narrativo a sua condução. O diretor Ziad Doueiri realça que situações banais imbuídas a partir da xenofobia e dotadas de raiva, egocentrismo e ódio, desencadeiam tensões assustadoras. O filme expõe, que estes aspectos estão tão enraizados de forma quase invisível em nossas ações cotidianas, que frente a situações estressantes direcionamos ao outro, o estranho, o desconhecido, nossos sentimentos de insuficiência e ignorância. É o ser humano político e irracional de hoje, jogando na lata de lixo do semelhante, suas próprias insuficiências para sentir-se superior.

Doueiri estrutura toda essa discussão na figura dos dois protagonistas, trabalhando o contexto do ódio de Toni frente a migração de Yasser, ambos pertencentes a uma cultura temperada por séculos de guerras, violências e preconceito. O texto escrito pelo diretor em parceria com o roteirista Jouelle Touma, evita tomar partido de quem está certo ou errado, há sempre uma preocupação de revestir Toni e Yassef com camadas de humanidade, que apresentam comportamentos que ao mesmo tempo provocam empatia junto ao público quanto incitam a raiva. É como se o próprio filme fosse descontruindo a nossa visão que a vida é baseada apenas no preto e branco, e que ela é feita na verdade, de camadas ambíguas, e a busca de compreensão em relação a intolerância (e de onde ela também provém) seria a solução mais fácil de se reconciliar com o que consideramos como “diferente”.

Neste ponto, tanto os personagens quanto as discussões acerca da mensagem principal do filme, levam a um sólido debate universal sobre a liberdade de expressão, o racismo, o choque cultural e o respeito às diferenças. O Insulto é um filme libanês que falam sobre os principais problemas do seu país, mas é uma obra universal, pois no plano narrativo, ela dialoga com várias situações imprescindíveis que acontecem no contexto global.

De certa forma, Ziad mostra que a sua experiência no cinema norte-americano (ele foi assistente de vários filmes de Tarantino) ajudou a moldar a estética do seu trabalho. Em cada frame do filme, temos uma narrativa dinâmica que explora bem a apreensão dos personagens, principalmente nos momentos mais emocionais – a câmera próxima de Tony e Yassef quando eles se confrontam, indica a forte tensão das suas palavras e colocações. Os enquadramentos são construídos para que os personagens se complementem dentro do quadro fílmico.

Isso facilita que a linguagem ágil, inspirada no cinema americano, funcione por imergir o espectador no efeito dominó de tensão que sai da esfera particular dos personagens para o campo macro-social das relações diplomáticas, que o filme apresenta na segunda metade no drama de tribunal. Observamos todos os eventos absurdos da trama, através de uma condução visual afiada que nos mantém ligados a 220v com aquilo que assistimos.

É claro que mesmo com a condução eficiente, O Insulto apresenta problemas no seu desenvolvimento. A tônica novelesca impera em vários momentos, o que enfraquece sua intensidade. O roteiro, principalmente, na parte dramática, tem excessos de viradas rocambolescas que “forçam” ao máximo surpreender o espectador, sem jamais ser espontâneo. As revelações sobre os advogados, o passado de um personagem e as coincidência nos desdobramentos narrativos não trazem ressignificações pontuais ao enredo e acabam reproduzindo uma “novela” de tribunal longa, que não segue o belo drama construído. Soma-se ao fato, do filme praticamente “esquecer” na metade do longa as fortes personagens femininas tão importantes e o final simplista demais, que não se encaixa na complexidade do debate, mesmo que a mensagem de esperança em relação a humanidade soe bonita, seu estofo dramático não é bem construído. É um final sentimentalista demais, mode on Spielberg.

É fato que falta a Ziad, a habilidade e a sutileza artesanal de um Asghar Farhadi na costura das relações e emoções humanas. Isso não apaga a relevância política-social de O Insulto, que apresenta coragem em discutir um tema complexo, de forte teor político. Não tem a consistência dramática de outros dois concorrentes no Oscar desde domingo, no caso o chileno Uma Mulher Fantástica e o sueco The Square, contudo o filme libanês tem ótimas chances de abocanhar o prêmio pelas discussões válidas de tratar um conflito particular do país e transformá-lo em um debate universal.