O privilégio é invisível para quem o possui. Certos grupos, como negros e homossexuais, enfrentam preconceitos e obstáculos no seu dia-a-dia que grande parte das pessoas nem sequer imagina. Afinal, por mais que se fale em meritocracia, a verdade é que dependendo de quem está avaliando ou sendo avaliado, há toda uma bagagem histórica de costumes e percepções que invariavelmente afeta o caminho e as conquistas destas minorias (as exceções que de vez em quando aparecem não invalidam a regra). E ainda que tenhamos avançado muito no que diz respeito aos seus direitos e espaço na sociedade, as mulheres seguem sendo um destes grupos de “minorias”. “O Julgamento de Viviane Amsalem” ilustra muito bem este tratamento diferenciado com que a sociedade trata as mulheres… só que numa escala ainda mais assustadora.

O filme mostra uma situação inusitada que, por mais absurda que pareça, é verdade. Em Israel não há casamento civil, apenas religioso. Portanto, se um casal deseja se divorciar, eles devem realizar todos os trâmites necessários perante um tribunal de rabinos. A questão é que para que o divórcio seja oficializado deve haver o consentimento tanto da esposa como do marido. Se uma das partes não concordar com a separação, o divórcio não é concedido. É aqui então que começa o martírio de Viviane Amsalem.

Casada desde os 15 anos de idade com seu marido Elisha, Viviane já não deseja mais viver com ele. Na verdade, eles nem sequer moram mais sob o mesmo teto. Ela pediu o divórcio, mas o marido se recusa a consentir. Assim, ela leva o seu caso perante o tribunal de rabinos e, durante longos anos, vai definhar perante os juízes suplicando pelo direito ao divórcio.

A sinopse por si só já deixa claro o tipo de experiência desgastante que a história pode nos proporcionar. Acrescente então o fato de que o filme inteiro se passa justamente dentro da sala do tribunal, ao longo de vários anos, para onde Viviane volta inúmeras vezes a fim de apresentar o seu caso. Você pode imaginar o nível de tensão que fica no ar. Mas, longe de ser monótono, o filme é uma verdadeira montanha-russa de emoções, graças ao roteiro afiado, à direção sofisticada e, principalmente, à atuação magnética de Ronit Elkabetz no papel principal.

Aliás, a atriz israelense não apenas é a protagonista como também escreveu e dirigiu o filme, ao lado do seu irmão Shlomi Elkabetz. Um feito e tanto, ainda mais por que ela se sobressai em todos os campos.

Com diálogos afiados e um equilíbrio preciso entre drama e pequenos momentos de alívio cômico, o roteiro estabelece muito bem a dinâmica entre o casal. De personalidade forte e independente, Viviane não aguenta mais viver sob as restritas regras religiosas do marido. Depois de mais 20 anos de casamento e três filhos já adultos, ela sente que já cumpriu o seu papel como mãe e dona de casa e está pronta para seguir em frente. Elisha, o marido, é um figura enigmática que demoramos a entender a princípio. Frio nas suas respostas mas, ao mesmo tempo, repetindo várias vezes que ama a esposa, não sabemos direito porque ele deseja tanto viver com uma mulher que não quer mais nada com ele.

Mas o grande trunfo do roteiro é justamente deixar claro que, por mais que as suas personalidades e visões de mundo distintas tenham levado Viviane e Elisha a uma vida de brigas e desentendimentos, ambos ainda assim se respeitam e valorizam a família que construíram juntos. Isso fico claro quando, mesmo nos momentos mais explosivos, eles medem as palavras que utilizam pois sabem que podem machucar mais do que devem o seu companheiro, trazendo uma camada de complexidade que eleva a história acima de uma mera disputa entre marido e mulher.

Quando testemunhas começam a ser convocadas para falar sobre o relacionamento do casal, o filme então faz jus ao seu nome já que, ao invés do divórcio, é a protagonista quem passa a ser julgada pelos rabinos. Afinal, todas as testemunhas, e inclusive ela própria, afirmam que Elisha é um bom marido. Então por que ela deveria se divorciar dele? Quando ela responde que não o ama mais e simplesmente deseja seguir com a sua própria vida, o olhar de espanto no rosto dos rabinos mostra o quanto aqueles homens não estão acostumados a ver uma mulher exprimir sua opinião dessa forma. E pelo desprezo como eles tratam os argumentos apresentados por Viviane, o espanto rapidamente se transforma em desaprovação, já que segundo eles esta não é a forma que uma “mulher direita” deve se comportar.

À medida que as sessões no tribunal vão se sucedendo e as semanas se transformam em anos, o desespero toma conta de Viviane e também do espectador. Toda vez que o divórcio parece estar próximo, alguma coisa muda a decisão dos rabinos e a sensação é que voltamos à estaca zero. É uma experiência angustiante, sem dúvidas, mas que é orquestrada com maestria pelos diretores. Em diversos momentos, a câmera se coloca no mesmo lugar dos personagens e as imagens transmitem o ponto de vista de cada um deles, como quando Viviane e Elisha se entreolham apenas de lado, através das costas dos seus advogados, ou quando vemos os protagonistas de cima para baixo, representando a visão dos rabinos em sua elevada tribuna de madeira.

Mas, no final das contas, talvez seja o elenco o grande responsável por manter nosso interesse até o derradeiro final. Ronit Elkabetz domina o filme e, ainda que um misto de desespero e cansaço tome conta da sua personagem a cada nova sessão no tribunal, a sua resiliência e força de vontade fazem com que o espectador torça por ela em todos os momentos. Mas Simon Abkarian, que dá vida a Elisha, também merece aplausos. Com um personagem desprezível e merecedor de todo nosso ódio pela frieza e teimosia, o ator consegue aos poucos exibir algumas brechas na armadura emocional de Elisha e mostra o quanto ele se tornou refém das próprias convicções religiosas, mesmo quando estas vão contra todo o bom senso. Na verdade, o elenco inteiro está excelente e afiadíssimo, o que é comprovado pelas participações breves, porém marcantes, das várias testemunhas.

Na época do seu lançamento, o filme causou certa polêmica em Israel e algumas críticas apontaram que, caso fosse a esposa quem não concedesse o divórcio, o marido ficaria na mesma situação. Opiniões como essas, porém, apenas reforçam aquilo que eu disse no início do texto. Afinal, se você acha que o marido iria passar pela mesma provação da esposa, claramente você não percebeu os olhares julgadores e superiores que os três rabinos a todo momento lançam sobre Viviane, enquanto Elisha repetidamente é referenciado como um “bom marido”. De fato, o privilégio é invisível para quem o possui.