Na medida em que os avanços da medicina impõem uma sociedade com cada vez mais idosos, eles se colocam diante da possibilidade de serem protagonistas e plateia para toda uma gama de histórias potencialmente intocadas por cineastas. Esse processo está acontecendo e o crescimento do perfil de produções como “O Exótico Hotel Marigold” (2011) e “Philomena” (2013) – curiosamente, ambas inglesas e estreladas pela grande Judi Dench – serve como um claro demonstrativo.

No tocante à caracterização e dramatização, no entanto, essa setorização coloca uma questão que transcende o cinema: a partir de que ponto nos tornamos velhos? Essa é uma das várias perguntas trazidas à tona no excelente “O Outro Lado da Rua” (2004), de Marcos Bernstein.

O roteiro, de autoria do diretor em parceria com Melanie Dimantas, foi desenvolvido em um dos célebres laboratórios do Festival de Sundance e o esforço é palpável: tudo o que falta às grandes produções recentes do cinema nacional em termos de sutileza aparece neste filme. No decorrer do tempo de projeção, ele trabalha, de forma eficiente e surpreendentemente despida de pedantismo, o silêncio e a fotografia em cores frias, bem como as elipses necessárias à ambiguidade que dá o tom da trama até seu desenlace.

A história se passa em uma Copacabana dominada por tons azuis e escuros, em que Regina (Fernanda Montenegro) passa o fim de seus dias. Aposentada e sozinha, a idosa passa o dia a observar situações cotidianas e, em uma forma de continuar ativa, utiliza seu talento para denunciar crimes à polícia. Certa noite, ela se convence de que um juiz que mora no prédio da frente (Raul Cortez) assassinou a esposa, e decide se envolver com ele para descobrir a verdade.

A decisão de participar da missão policial vem, largamente, da questão proposta no início do texto: Regina não se vê como idosa e deseja ter participação na vida que lhe cerca. Essa ideia é contraposta à visão de mundo de “Patolina”, codinome policial da personagem de Laura Cardoso, que aparece no filme numa ponta de luxo, em um diálogo de tirar o chapéu.

Regina nos é apresentada como uma mulher de muita fibra moral e intransigente, o que a deixou amarga e solitária na terceira idade e desesperadamente em busca de um propósito para viver. Essa busca a faz confrontar um mundo que impõe a ela sua condição de idosa: a altercação entre ela e o delegado que a supervisiona (Luis Carlos Persy) serve como exemplo dessa imposição.

Servindo de âncora para essas ideias está Fernanda Montenegro, cujo domínio técnico existe à revelia dos meus melhores elogios e se encontra em um patamar de atuação inigualado no Brasil. Se ela fosse americana, estaríamos diante de alguém com a reputação internacional de Meryl Streep: Fernanda some dentro de Regina, habitando-a com uma naturalidade ímpar, e boa parte do prazer de ver “O Outro Lado da Rua” vem de assisti-la desabrochar na personagem. Cortez serve bem de contraponto, mas mesmo ele empalidece diante do trabalho da atriz.

A direção extremamente educada e a trilha cafona e intrusiva atrapalham em certos momentos, mas não conseguem diminuir o valor de um roteiro que estabelece sua narrativa e seus temas de forma clara e dizendo muito pouco, nem de uma atriz que continua no auge de seu primor artístico. Repleto de simbolismo e cenas impactantes, “O Outro Lado da Rua” é uma reflexão sobre a velhice e a obsolência, bem como a jornada de uma mulher em busca de se reconectar consigo mesma.