A primeira cena já é emblemática: num plano aéreo sobre o grande gramado à frente do Congresso Nacional, um muro divide manifestantes da esquerda e direita brasileiras. Ou, mais exatamente, entre aqueles simpáticos ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT), que, então com Dilma Rousseff na presidência, estava à frente do país, e aqueles que pediam a expulsão de Dilma, do PT e de seus correligionários da política brasileira.

O Processo, de Maria Augusta Ramos, usa esse ponto de partida para acompanhar, dos bastidores, o sumário e fulminante processo de impeachment de Dilma, e construir, ao longo da projeção, um testemunho eloquente – e aflitivo – sobre esse episódio da história recente do país. Naturalmente, com as paixões políticas inflamadas do Brasil atual, o fato de o filme de Maria Augusta eleger como protagonistas o time de políticos que liderou a defesa de Dilma no Senado – os senadores Gleisi Hoffmann (PT-PR), Lindbergh Farias (PT-RJ) e Vanessa Grazziotin (PCdoB do Amazonas), e o então Advogado-Geral da União, José Eduardo Cardozo (PT-SP) – deve limitar sua circulação apenas ao público favorável à ex-presidente. O que é uma pena: independente das suas afinidades ideológicas, leitor, O Processo é informativo, ágil, acessível e, no que poderia ser facilmente uma armadilha para a diretora, objetivo e abrangente em seu espaço para opiniões contrárias.

Objetivo, mas não isento. Tal coisa não existe ao se tratar de política, e Maria Augusta, com o auxílio fundamental da montadora Karen Akerman, deixa claras as suas simpatias, desde a escolha do assunto e de seus personagens. O que não implica, necessariamente, em propaganda explícita para os políticos petistas, nem em demonização de seus opositores, algo em que O Processo não recai.

(Para ser fiel à proposta da artista, porém, sinto que o mais honesto, para com a obra, seus realizadores e os leitores deste texto, é dizer sob que viés eu a experimentei: nunca gostei de Dilma como presidente, e não sou torcedor do PT em particular, mas sempre respeitei a sua posição como chefe de estado eleita democraticamente, e considerei uma violência o processo de sua remoção do cargo – um desrespeito ostensivo e vergonhoso às ideias de justiça, democracia e equidade no Brasil, mesmo que a coisa toda tenha acontecido dentro da previsão constitucional. Portanto, também considero Dilma uma vítima – o que deve bastar para você dizer se o que escrevo aqui tem relevância ou não).

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Daquele surreal dia 17 de abril de 2016, quando os deputados federais, alegando os mais exuberantes motivos, votaram pela instauração do processo de impeachment no Senado (entre os ridículos e os pitorescos, Maria Augusta mostra também o sinistro Jair Bolsonaro [PP-RJ], exaltando a memória do coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável pela tortura da ex-presidente durante a ditadura militar), até o dia 31 de agosto, quando Dilma tornou-se oficialmente ex, O Processo acompanha os esforços da bancada pró-presidenta no Senado, liderada por Hoffmann, para defendê-la das acusações de desmazelos fiscais (as quais, claro, não vou detalhar aqui, porque o filme está aí pra isso).

Seria defesa se houvesse oportunidade para tanto: tal como o Josef K. do romance de Franz Kafka, cujo enredamento num processo judicial vago e implacável é ecoado de diversas formas no filme, os políticos se deparam com uma situação juridicamente opaca, e um julgamento que é apenas uma cortina de fumaça, já que nunca há discussão sobre as provas contrárias apresentadas por Cardozo e Farias, e nem elas são levadas em conta na decisão final. É necessário tirar Dilma do cargo, e pronto. É esse quadro estarrecedor, para quem acredita na observação de um julgamento justo e imparcial e na estabilidade democrática, que o filme pinta, com todos os seus personagens principais e seus lances mais tragicômicos.

Para mim, pessoalmente, além da construção bastante didática e informativa do contexto do processo de Dilma e seus principais atores, o ponto de vista adotado por Maria Augusta ajuda a dar visibilidade ao outro lado da história, aquele que foi tão esparsamente documentado pelas grandes redes de comunicação: é bastante interessante observar as reações à coisa toda de dentro do PT, desde a exasperação de Farias e Cardozo a cada vez que se tenta argumentar, em vão, em defesa da presidente, até as reuniões em que se analisa o processo em curso, com direito a uma reflexão desiludida sobre os rumos do partido mais para o final.

Para quem só conhece a versão oficial das chamadas “pedaladas”, o documentário também pode ser bastante instrutivo, ao demonstrar o quanto foram acusações vazias de sentido, e o quanto elas, afinal, não importaram para o resultado a que se chegou. Também é salutar ver rostos tão conhecidos (e tão demonizados no fogo dos acontecimentos) como Hoffmann e Cardozo sob esse prisma mais íntimo, humano, tentando tocar um barco que já havia sido irremediavelmente atingido no casco. Cardozo, aliás, é provavelmente a figura de maior destaque do longa: ferino, perspicaz e bastante articulado em seus discursos e enfrentamentos, ele resume o sentimento de perplexidade diante dos acontecimentos, bem como desmonta a retórica e os subterfúgios dos acusadores, como no belo discurso, no dia do depoimento de Dilma no Senado, em que Cardozo compara o sentimento de “bem maior” da professora de direito Janaína Paschoal (cuja postura histriônica a torna uma figura involuntariamente cômica ao longo da projeção), uma das autoras do pedido de impeachment, à mesma convicção por parte dos torturadores de Dilma.

Os três nomes de maior vulto da história, porém, só são vistos de longe: Dilma e Lula só aparecem em imagens de noticiários e no dia do depoimento, já que a produção optou por e ater aos trabalhos da frente pró-Dilma do Senado, e Michel Temer, o vice-presidente ardiloso que afinal conseguiu usurpar o mandato de Dilma, comparece só em menções de colegas (como nas infames falas telefônicas de Romero Jucá sobre o “grande acordo nacional” para tirar o PT do poder), já que, à época retratada nas filmagens, o racha com o PT já estava mais do que escancarado. Sem diminuir as suas várias qualidades positivas, é esse ponto que torna O Processo um filme menos definitivo do que ele poderia ser. Estamos diante de um trabalho muito lúcido, equilibrado e informativo, mas que vai pouco além de um registro do momento (sem demérito da importância desse registro), sem conseguir desencavar revelações maiores sobre acontecimentos tão conhecidos. Também há uma certa barriga nas cenas de ligação entre os momentos mais climáticos, quando a câmera apenas acompanha as andanças, dentro e fora do Congresso, de Hoffmann e Cardozo.

Mas, por concatenar tantas imagens simbólicas da política brasileira na segunda metade da década, várias delas com uma carga especialmente sombria à luz dos acontecimentos atuais (o abraço entre Aécio Neves e Romero Jucá é um momento particularmente repulsivo), O Processo é desde já um filme muito importante para se entender o Brasil – e estou por ver uma metáfora visual mais poderosa para o momento político nacional do que a fumaça das bombas, trocadas entre manifestantes e policiais durante um protesto anti-Temer, encobrindo o céu de Brasília.