Representar realidades e anseios é uma das inúmeras capacidades que o cinema apresenta. Impossível descola-lo de seu contexto de produção e consumo, num mundo em que, por exemplo, a atenção do público se volta a ameaças sobrenaturais de um “It – a coisa”, talvez numa tentativa de conseguir explicar, numa narrativa simples, a noção de mal de forma mais fácil que num mundo real cheio de conflitos mais complexos, sem mocinhos.

No Brasil de 2017, essa emergência grita nas telas. A leitura de realizadores e público para com os filmes se tinge de sentidos que dialogam com o momento de intensas transformações políticas, sociais, morais etc. E obras explícitas como “Real – O plano por trás da história” (2017) ou “Polícia Federal – A lei é para todos” (2017) não são as únicas detentoras dessa característica; mesmo o tradicional gosto do público brasileiro por comédias leves revela algo sobre o que queremos ver – ou, nesse caso, sobre o que não queremos ver: um país desigual, corrupto, feio, triste. E nesse cenário de ebulição, encontram-se grandes personagens femininas que ajudam a enriquecer esse universo de representações.

A apresentadora de TV Regina Casé em cena de Que Horas Ela Volta?Larga que essa trouxa não é sua/vem cuidar da roupa tua/Tão bonita de usar

Tomemos “Que horas ela volta?” (2015), sucesso de público e crítica de Anna Muylaert. Sem adentrar abertamente em momento algum em aspectos políticos, a diretora ainda assim explora relações de poder sociais marcantes de nossa sociedade a partir do trio Val-Jéssica-Bárbara, interpretadas, respectivamente, por Regina Casé, Camila Márdila e Karine Teles.

A dinâmica de Val e Bárbara trouxe ao grande público um “normal anormal”: a inferiorização do pobre perante o rico numa sociedade dita moderna, mas que ainda considera ok propor um tipo de tratamento a um empregado que remonta à época da escravidão. Temos o quartinho abafado de Val, o apagamento da vida do pobre na servidão ao patrão, os “favores” como o sorvete de segunda categoria separado a ela, dentre outros pequenos detalhes que demarcam a distância socioeconômica entre as personagens. Há quem considere Bárbara estereotipada, mas ela é, talvez, a personagem mais real do longa de Muylaert. É um espelho cujo reflexo incomoda.

Jéssica surge para desestabilizar essa “ordem natural” das coisas. É uma personagem jovem, impetuosa, que nasceu num mundo em que a possibilidade de ascensão social era, de fato, uma possibilidade, e não um sonho impossível. Impossível não relacionar Jéssica às promessas de um Brasil diferente que surgiram no início da era Lula e aos millennials brazucas, que nasceram numa época em que tudo parecia que seria mais fácil para eles, pois o mundo lhes daria o que mereciam; na prática, mal sabiam eles que teriam que lutar (e muito) pelo que precisavam. Márdila consegue retratar essa característica, um certo egoísmo e senso de merecimento, com maestria.

Se há uma lição bela que o “Que horas ela volta?” consegue trazer no meio desses pequenos conflitos, é a abertura de diálogo entre universos e morais tão diferentes como os da passividade de Val e assertividade de Jéssica. Elas entram em embate, o estranhamento é a norma, mas ainda assim há espaços de empatia e sororidade, na qual elas aprendem uma com a outra e se transformam: Jéssica passa a entender melhor os sacrifícios da mãe, que abdicou à família não para seguir a ordem natural das coisas, mas para ter a chance de dar uma vida melhor à filha; e Val passa a entender melhor a filha, que luta para colher os frutos desse sacrifício a todo custo. A ajuda a essas figuras marginalizadas não vem de um benfeitor direto, mas de um conjunto de elementos sociais que permitem que Val ganhe uma simbólica “alforria” e Jéssica siga como uma filha liberta. Não era esse o sentimento que buscávamos alguns anos atrás no Brasil? Parece que faz tanto tempo!

'Aquarius': equilíbrio perfeito entre simbolismos, política e memória afetivaHoje/Trago em meu corpo as marcas do meu tempo

Essa busca por equilíbrio social como chave para a resolução de conflitos individuais não é, porém, isenta de contradições. “Aquarius” (2016), de Kleber Mendonça Filho, traz isso muito bem. Colocado no meio de uma tempestade político-cultural no ano de seu lançamento, o longa ainda suscita discussões acaloradas, seja pelo conteúdo de suas entrelinhas, seja por motivos de puro ódio mesmo por conta do posicionamento político de seu diretor.

Clara (Sônia Braga), a protagonista, é uma figura de brilho irradiante: vive envolta de discos e memórias do passado, venceu um câncer, leva uma vida plena na terceira idade e, sob muitos aspectos, parece resolvida consigo mesma – coisa particularmente difícil para uma mulher. Sua força para enfrentar um inimigo tão mais poderoso, a construtora que busca de todas as formas fazê-la desocupar o antigo prédio onde mora, é contagiante. Não por acaso, acabou sendo lido como um símbolo de resistência perante as controversas mudanças políticas, em especial, na época do impeachment de Dilma Rousseff.

Mas uma narrativa de mocinhos e vilões jamais faria sentido em “Aquarius”. No diálogo do filme com nossa realidade, difícil não perceber que a própria Clara se agarra a elementos do passado, como bem vemos no senso de pertencimento que tem para com o prédio como um todo, e não apenas sua unidade de moradia. Por mais que seja a protagonista por quem sentimos uma atração irresistível graças à potência da interpretação de Braga, Clara também se aproveita de privilégios de sua condição de membro de uma classe média alta, lutando contra seu inimigo de formas por vezes questionáveis. Numa pequena cena, ela conversa com outra personagem sobre a condição de uma diarista, comentando sobre a imemorial relação de desigualdade na qual patrão explora empregado, que rouba do patrão, por conseguinte. Se isso não é bem Brasil, eu não sei o que seria…

Passado um tempo do lançamento do filme, é emblemático pensar em seu final, com Clara jogando na mesa dos chefões da construtora Bonfim os troncos infestados de cupins ao som de Taiguara. A cena é de um impacto tremendo, arrepia e emociona. Mas a dramática ação final dá também a noção de que, literalmente, “a luta continua, companheiros”, e que o duelo de forças entre ela e a Bonfim não termina ali, naquele momento mágico. Nesse sentido, Clara também é um pouco como nós, recebendo golpes cotidianos em meio a tantas incertezas com o futuro, matando um leão por dia.

Ainda somos os mesmos e vivemos/Como nossos pais

Incertezas também são o mote de outro filme focado nas experiências de uma mulher, “Como nossos pais” (2017). O longa de Lais Bodanzky traz como protagonista Rosa, interpretada por Maria Ribeiro. Sua instabilidade e busca pela definição de uma identidade própria não trafegam no universo da política brasileira de maneira tão aberta, ainda que haja a figura do pai biológico da personagem, um fictício ministro do governo Rousseff, diga-se de passagem, pois se optou por ignorar Temer na linha do tempo traçada no filme.

Os questionamentos sobre liberdade sexual, jornadas de trabalho remuneradas e não remuneradas da mulher, conflitos de geração e a eterna pendenga entre fazer o que gosta e pagar boletos não deixa de perpassar os mesmos terrenos de “Aquarius” ou “Que horas ela volta?”, mas o enfoque de Bodansky está mais no íntimo enquanto político. A diretora demarca isso bem quando pontua, ao longo do roteiro, a apatia de Rosa para com o que acontece em Brasília e por sua preferência pelos comerciais e não pelo telejornal. Nesse sentido, ela também é um pouco como muitos de nós em 2017: salvar o Brasil é opcional, mas salvar a nós mesmos é essencial.

Olhando para trás, essa sensação de estar à parte na história é também sintomática de momentos de grande tensão social em nosso país – vide pessoas que não veem problema nenhum em termos vivido uma ditadura, por exemplo. Rosa acredita isentar-se desse debate, e ao crer nisso, bate na tecla do quão perdidos podemos ficar em termos de tomar uma posição ativa numa dada realidade. E adivinha? Passividade também é uma coisa bem brasileira, como bem pontua o documentário “Histórias que nosso cinema (não) contava”, de Fernanda Pessoa, que expõe o Brasil ditatorial a partir de pornochanchadas.

Como bem o filme de Pessoa pontua, qualquer obra traz uma janela de leitura possível a partir de fatos históricos. Essa abertura, porém, anda bem clara nos últimos anos por essas bandas, e personagens mulheres têm conseguido sintetizar elementos bastante interessantes dentro dessa perspectiva no cinema nacional.