“Desculpe, Morvern. Não tente entender, pareceu ser a coisa certa a se fazer”

Essa mensagem é a última que Morvern Callar (Samantha Morton) tem de seu namorado. Penúltima, aliás. Ele acabara de se matar e, como “herança”, lhe deixou um bilhete de suicídio escrito no computador e um romance a ser publicado. O que alguém faria nessas circunstâncias? Certamente “apagar o nome do namorado e colocar o seu na autoria do livro” e “deixar o corpo ali, como se nada tivesse acontecido” não estariam entre as respostas mais dadas a essa pergunta.

A diretora escocesa Lynne Ramsay tinha alguns curtas no currículo e um elogiado debut em longas de ficção (‘O Lixo e o Sonho’) quando, em 2002, levou às telas a história peculiar de “O Romance de Morvern Callar”. O drama estrelado por Samantha Morton lhe rendeu prêmios da crítica e de Cannes, mas, anos depois, acabou eclipsado pelo turbilhão que foi “Precisamos Falar Sobre Kevin”, lançado em 2011, após um hiato de quase uma década da cineasta (estamos falando sobre longas).

“Silêncio desconfortável pode ser bem alto”, já dizia Madonna

Há muito em “Morvern Callar” do que veríamos em “Kevin” e, mais recentemente, em “Você Nunca Esteve Realmente Aqui”. A câmera nervosa, o som e a trilha que alternam entre o nulo e o ensurdecedor, e, principalmente, os personagens principais. Eles podem até ter um quê de anti-herói (Joaquin Phoenix em ‘Você Nunca…’), mas estão envoltos em situações amorais e, nem sempre, têm as reações mais, digamos, adequadas ao que lhes é apresentado.

Em “O Romance de Morvern Callar”, Ramsay trabalha com um roteiro econômico (adaptado do livro de mesmo nome, lançado em 1995) para despertar no público sensações por meio do visual do filme.

A exemplo de seus outros trabalhos, o vermelho tem um papel primordial aqui. Aqui, a cor é usada para despertar os sentidos para as coisas erradas que Morvern está fazendo, mas também é colocada em contraste com outros tons (o azul, por exemplo) para mostrar que a confusão de sentimentos e a dualidade que envolve a personagem. Além disso, a cor tem papel primordial na catarse de Morvern.

Outro elemento que é certeiro para o êxito do filme é o trabalho de Samantha Morton. Atriz contida, ela tem aqui uma atuação que pode ter definido a sua carreira, que, sejamos sinceros, é um tanto um quanto subestimada (naquele mesmo ano, ela havia provado sua versatilidade com um bom trabalho como a Agatha de ‘Minority Report’, de Steven Spielberg). Como Morvern, ela equilibra medo, infantilidade e dissimulação em um trabalho extremamente harmônico com a câmera.

Sem entregar de bandeja

Propositalmente ambíguo, o filme de Ramsay não tem êxito apenas com sua atriz principal. Já citado alguns parágrafos atrás, a cineasta tem na trilha sonora uma chave importante para desvendar o que está na tela. A alternância entre som diegético e não diegético é movimentada quase que como uma marionete, em uma série de escolhas acertadas. Quer exemplo? A música “I’m Sticking With You”, do Velvet Underground, que é usada de forma a quase que suprir a economia do roteiro.

“O Romance de Morvern Callar” esmiúça as ditas “fases do luto” em um exercício quase que masoquista, tanto para quem assiste quanto para quem está lá dentro da história, vivendo-a. É um filme interessante de se pensar no escopo total da carreira de sua realizadora, e sua insistência em brincar com estilo e conteúdo sem entregar tudo ao espectador. Quase uma década separa “Morvern” e “Kevin”, e não deixa de ser empolgante ver o quanto o trabalho de Ramsay evoluiu nesse intervalo, ao mesmo tempo em que manteve a essência crua de sua direção.