Em um mercado nacional dominado (e saturado) por comédias sem um pingo de graça e personalidade (mas com muito Leandro Hassum), e que ainda assim continuam fazendo sucessos estrondosos de bilheteria, O Roubo da Taça é um ótimo exemplo de que nem tudo está perdido. Sim, ainda é possível fazer um bom exemplar de humor no cinema brasileiro, capaz de dialogar com o grande público e ter um mínimo de qualidade artística. Para fazer isso dar certo, o filme de Caíto Ortiz, primeiro longa-metragem brasileiro com o selo da Netflix na produção, nem precisa de muito: basta o básico, como um roteiro que se preocupa em efetivamente contar uma história, um excelente elenco e uma direção acima da média.

Os letreiros iniciais do filme já anunciam: “uma boa parte disso realmente aconteceu”. É apenas um lembrete de que, por mais absurda que pareça, grande parte da história contada em O Roubo da Taça é verdadeira ou foi inspirada por fatos reais: o roubo da Taça Jules Rimet, símbolo do tricampeonato brasileiro na Copa do Mundo, surrupiada da própria sede da CBF, no Rio de Janeiro, em 1983, por dois ladrões “pés-de-chinelo” e que, numa ironia do destino, a venderam logo para um argentino. Um furto bem fácil, considerando que (1) a taça estava guardada apenas por um vidro blindado que pôde ser retirado por um prego e (2) era a original que estava à mostra, enquanto a réplica permanecia guardada num cofre. Pasme e acredite se quiser: esses são apenas alguns dos absurdos reais da história. Resultado: a taça nunca mais foi recuperada, e, apesar de vários rumores diferentes, é dado como certo que foi derretida.

Claro que a história real provavelmente não foi tão engraçada, mas, nas mãos de Ortiz, também responsável pelo roteiro, em parceria com Lusa Silvestre (Estômago), dá origem a uma comédia de erros eficiente. O filme acompanha uma série de personagens imbuídos do tal “jeitinho brasileiro”, em meio à decadência da ditadura militar nos anos 80, marcados pelo afrouxamento dos anos de chumbo e, ao mesmo tempo, por inflação e estagnação econômica.

Cena de O Roubo da Taça

Não é à toa que o protagonista, Peralta (Paulo Tiefenthaler), encarna tão bem a velha figura do “malandro carioca” que poderia estar em uma das chanchadas do cinema nacional da época. Peralta está mergulhado em dívidas, é beberrão, arranja atestados médicos para faltar ao trabalho e é viciado na jogatina – um personagem tão torto com quem é quase impossível criar empatia, mas que ganha pontos pela impecável atuação de Tiefenthaler, que finalmente encontrou um personagem para chamar de seu.

Apesar de sua lista de defeitos, Peralta é só o mais representativo de uma galeria de personagens de código moral bem flexível: sua namorada/mulher, Dolores (Taís Araújo), o parceiro no roubo, Borracha (Danilo Grangheia), e até o investigador Cortez (Milhem Cortaz), que ainda carrega consigo ranços da truculência policial dos anos de chumbo. São eles que dão o tom ao filme, que aborda a dualidade da comoção nacional gerada pelo roubo da taça, ao mesmo tempo em que corrupção e incompetência passeiam pelo próprio povo em todos os níveis, desde o malandro carioca até o presidente da CBF – qualquer semelhança com a realidade atual é mera coincidência. O sentimento nacional de ingenuidade e decadência é perfeitamente resumido na cena em que Peralta, ao comemorar o sucesso do roubo, toma achocolatado dentro da taça, dançando e cantando pela casa. Aliás, pontos positivos para o bom elenco reunido por Ortiz, que, além de fugir dos comediantes já conhecidos do cinemão brasileiro, reúne nomes competentes como os já citados e adições inusitadas e bem-vindas, como o diretor teatral Hamilton Vaz Pereira, na pele do mafioso à lá “O Poderoso Chefão” Seu Bispo, e Mr. Catra, numa ponta divertida como o comerciante Albino.

Mas se há algo em que O Roubo da Taça acerta em cheio é na reconstituição histórica da década. O trabalho de direção de arte de Fábio Goldfarb é impecável, e não à toa foi um dos Kikitos ganhos pelo filme no Festival de Cinema de Gramado deste ano, onde a produção também abocanhou os prêmios de roteiro, fotografia e ator para Paulo Tiefenthaler. Tudo remete com perfeição à época, desde os figurinos utilizados por Taís Araújo e seus óculos escuros enormes, as bermudas quase minúsculas do personagem de Tiefenthaler e as joias de ambos, até a reconstituição dos ambientes e objetos de cena, com um cuidado especial aos rótulos, além do uso de imagens de arquivo nas TVs e referências bem conhecidas, como o então galã de novelas Mário Gomes e o apresentador Cid Moreira. Nostalgia é o que não falta em cena.

Taís Araújo em O Roubo da Taça

Para completar, Caíto Ortiz se revela promissor na direção: se a maioria das comédias nacionais tem cara de novela ou de publicidade, Ortiz mostra que entende que o bom uso da linguagem audiovisual pode, por si só, criar ou antecipar a piada para o espectador atento. Basta notar o momento em que, sem precisar explicitar nada através dos personagens, Ortiz posiciona a taça roubada no meio da mesa do casal de protagonistas, levemente desfocada atrás de Dolores, revelando, assim, que a moça já sabe do roubo, enquanto Peralta o nega veementemente.

Há alguns problemas que incomodam bastante em O Roubo da Taça, principalmente no que diz respeito às quebras de ritmo, quando o filme se alonga mais do que o necessário e corre o risco de soar tedioso, e também em relação à narração desnecessária e excessivamente didática de Dolores. A personagem de Taís Araújo, aliás, apesar de sua reviravolta final e de alguns bons momentos em cena, é quase totalmente desperdiçada, apesar de ser vendida como a grande estrela no pôster.

Quando se tem em mente o atual panorama das comédias brasileiras nos cinemas, porém, esses problemas acabam sendo relevados: O Roubo da Taça pode não ser uma obra-prima e nem garantir gargalhadas cavalares durante sua projeção, mas está um passo acima de outros exemplares do gênero, pelos esforços e cuidados visíveis na produção. É a prova de que não é preciso muito para sair da caixinha e das fórmulas pré-concebidas e garantir um filme divertido e acessível, que não subestima a inteligência do espectador como mero passatempo.