Um dos poderes da animação é permitir dar voz e vida a seres que outrora seria impossível imaginar, dessa forma o apelo ao público infantil parece surtir um forte efeito, proporcionando a discussão de temas que ainda podem vir a ser tabu, dependendo da educação cultural da criança. Foi contornando esses tabus que os filmes de animação da 20th Century Fox (hoje Disney), conquistou público infantil e adulto do mundo todo. Quem nunca achou divertido acompanhar as aventuras de Sid e sua turma pela Era do Gelo ou dançou no mês de Dezembro com Anastasia?

Outro aspecto interessante nas produções da 20th Century Fox é a projeção que ela procura dar a culturas específicas, como o modo de vida na pré-história, o fim da era dos czars na Rússia, o Brasil e, em seu último trabalho, a Espanha e suas touradas. O responsável por imergir nesse aspecto cultural agora é o mesmo que apresentou o Brasil em Rio: Carlos Saldanha.

A mais recente obra do diretor brasileiro é O Touro Ferdinando. O filme acompanha a trajetória de Ferdinando, um animal que conforme a sua natureza deveria ser ávido por brigas, disputas e outras características que remetam as touradas espanholas. Saldanha, que em trabalhos anteriores mostrou as cores do Brasil, dessa vez utiliza bastante o amarelo e o vermelho das cores espanholas, enquanto nos prepara para a exibição da bandeira da Espanha em mastro, nos deixando bem localizados sobre o país que decide imergir.

A diferenciação de Ferdinando dos outros touros é evidente desde sua primeira aparição. O touro negro de olhos azuis tem uma visão diferente do que a vida pode oferecer aos que vivem no mesmo arrendamento. E é a partir daí que se percebe duas das grandes temáticas que permeiam a película. Se por um lado, Ferdinando é calmo, gosta de proteger os outros seres da natureza e enxerga a vida muito mais do que uma disputa de quem vai enfrentar o “El Matador”, isso se deve a criação. Somos apresentados a dois pais e duas visões sobre criação de (porquê não dizer?) meninos ou seres do sexo masculino. Essa visão me remeteu bastante ao documentário “The Mask You Live In” de Jennifer Siebel Newsom que dialoga bem com a produção de Saldanha.

Newsom discutiu situações impostas a garotos que geram comportamentos e pensamentos fechados e quadrados durante a vida adulta. A documentarista aborda como essa máscara é passada de pai para filho em um ciclo de repressão e cultura da masculinidade que impera na sociedade patriarcal. De maneira coloquial e ajustada para ser compreendida pelo público alvo da animação, Saldanha traz o mesmo contraponto, discutindo de maneira implícita o quanto a educação de garotos de modo diferente da aprendida pela “hipermasculinidade” pode desenvolver homens diferentes e com um olhar mais sensível ao mundo que o cerca.

Quebrando esse paradigma da visão de masculinidade conferido pela sociedade patriarcal que Ferdinando se difere de todos os seus companheiros de curral. Ao mesmo tempo em que sofre preconceito pela posição diferenciada. Algo que dialoga com a sociedade contemporânea que ainda não conseguiu equilibrar seu modo de enxergar criações que fogem do habitual. Por isso, não é difícil perceber que O Touro Ferdinando trata de aceitação. O filme inteiro retrata a busca de Ferdinando por ser aceito entre os seus iguais por pensar diferente. Ferdinando quer que Valente e outros touros aceitem o fato dele não querer o mundo das touradas, enquanto quer que Paco o veja como outro cachorro e os humanos como um animal de estimação inofensivo. Uma constante luta contra sua natureza em detrimento daquilo que acredita ser.

Entretanto, desde o início, a trama que envolve o touro soa como um filme da Sessão da Tarde durante o período das férias. Os plots são previsíveis, seguem fórmula regular e as cenas que tentam criar tom humorístico e inovar se tornam enfadonhas e desnecessárias, como o núcleo dos cavalos. Estando organizado em todo o primeiro ato, mas perdendo a força nas partes finais. As próprias flores, vendidas durante a divulgação como a verdadeira paixão de Ferdinando, tem uma relação empobrecida e mal construída com o personagem principal.

Apesar de ser um filme regular, O Touro Ferdinando é um filme para toda a família e que implicitamente expõe discussões pertinentes para a sociedade contemporânea, além de oportunizar entender como são tratados os animais que participam das touradas. Mesmo que o tom de denúncia nunca se faça presente.