A escalada do governo Bolsonaro contra a cultura brasileira não é novidade como apontamos nos especiais feitos em 2019 e 2020 dos ataques ao setor do cinema. Neste ano, assistimos ao ápice deste processo: o incêndio em uma unidade da Cinemateca no dia 29 de julho.  

O fogo levando embora materiais e registros importantes da nossa história e identidade retratou simbolicamente a representação de Jair Bolsonaro à frente da Presidência da República: a destruição de tudo que representa um país. E isso incluiu o próprio povo ao retardar a compra de vacinas e tratar com descaso a dramática crise do oxigênio em Manaus.  

O Brasil, entretanto, demonstrou ser maior que Bolsonaro. Com as exceções de sempre, o povo e a cultura brasileira resistiram e se opuseram contra um genocida e incapaz. Falta pouco para nos livrar deste mal de uma vez por todas, para podermos viver e seguir em frente com um pouco mais de humanidade.  

Segue a lista anual do Cine Set dos 10 maiores ataques ao cinema brasileiro cometidos pelo Governo Bolsonaro em 2021:  

1) Incêndio na Cinemateca 

A Cinemateca foi um dos alvos preferenciais do Governo Bolsonaro desde 2020. O pior ministro da Educação da história, Abraham Weintraub, rompeu de modo unilateral o contrato com a antiga gestora do local, a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp).   

A tomada das chaves com a presença da Polícia Federal em 7 de agosto do ano passado demonstrou que o objetivo da ação era mais midiática, voltada para os fanáticos da seita bolsonarista do que propriamente com um plano de ação para a preservação do acervo e da Cinemateca como um todo – afinal, projetos e ideias não haviam nem nunca terão se depender deles.   

Dali em diante, a paralisia reinou na Cinemateca: o secretário de Cultura, Mário Frias (astro de “Floribella”) cozinhou a realização de um edital para uma nova gestora assumir a Cinemateca. Em abril de 2021, um alerta: funcionários demitidos da instituição divulgaram uma carta pública alertando sobre os perigos do abandono da instituição. Logo no segundo parágrafo vem o aviso: 

A possibilidade de autocombustão das películas em nitrato de celulose, e o consequente risco de incêndio frequentemente recebem mais atenção da mídia e do público. A instituição enfrentou quatro incêndios em seus 74 anos, sendo o último em 2016, com a destruição de cerca de 500 obras. O risco de um novo incêndio é real. O acompanhamento técnico contínuo é a principal forma de prevenção. A situação do acervo em acetato de celulose também é crítica. O conjunto está estimado em torno de 240 mil rolos, e corresponde à maior parte do acervo audiovisual da Cinemateca Brasileira. Tal acervo demanda temperatura e umidade constantes e, na falta de tais condições, sofre aceleração drástica de seu processo de deterioração. O acompanhamento técnico e as demais ações de preservação, inclusive processamento em laboratório, também são vitais.

Manifesto dos Funcionários da Cinemateca Brasileira

12 de abril de 2021

Não deu outra: o incêndio na Cinemateca destruiu parte da memória audiovisual de um país. Uma tragédia mais do que anunciada; tragédia planejada.  

Na maior cara de pau, poucos dias depois do incêncio, a Secretaria Especial da Cultura publicou um edital para contratação de entidade gestora da Cinemateca Brasileira. No Twitter, Mário Frias jogou a responsabilidade da tragédia para cima do Partido dos Trabalhadores, esquecendo que o PT deixou o governo federal em 2016.  

Em outubro deste ano, pelo menos, um alívio com a vitória da Sociedade Amigos da Cinemateca para gerir o espaço. Ainda que com dificuldades, o local retomou as atividades e tenta colocar a casa em ordem após tanto caos e desprezo.   

2) Negligência na Pandemia e a morte de Paulo Gustavo 

A Covid-19 encontrou em Bolsonaro um grande parceiro. Irresponsável desde o começo com pronunciamentos dizendo que se tratava de uma gripezinha e que o porte de atleta (taokey) não o faria sentir nada, o presidente chegou ao ápice da loucura com o negacionismo de incentivar remédios ineficazes, fakes news e viver em aglomerações sem máscaras.  

O pior, entretanto, veio quando atrasou a compra de vacinas. A demora de negociar com farmacêuticas como Pfizer e Moderna levaram o Brasil a ficar para trás na imunização da população. A situação se agravou com o surgimento da variante Gamma aqui no Amazonas e o drama vivido no Estado com hospitais sem oxigênio.  

O Brasil saiu de 194 mil mortos no dia 31 de dezembro de 2020 para alcançar o macabro número de mais de 620 mil vidas perdidas em dezembro deste ano. Parte significativa destas pessoas que nos deixaram não tiveram a oportunidade de tomar uma dose sequer da vacina graças a incompetência e demora do governo Bolsonaro.  

Paulo Gustavo é o nome mais conhecido desta triste lista. No dia 13 de março, quando diversos locais mundo afora já vacinavam pessoas com 18 anos de idade, o ator foi internado. Nesta época, o país ainda caminhava lentamente para imunizar os grupos prioritários – idosos e médicos.  Durante mais de dois meses, ele lutou com toda a garra para rever os filhos, o marido, seus muitos amigos e nos voltar a fazer rir.   

Não deu e, na noite de 4 de maio, todos choramos.  

Com a perda de Paulo Gustavo, o cinema brasileiro se despedia de seu atual campeão de bilheteria, o homem que levou mais 11,5 milhões de espectadores para ver “Minha Mãe é uma Peça 3”, uma comédia capaz de emocionar até os mais conservadores com mensagens de tolerância e respeito. Uma mensagem terrível para quem vive de ódio.  

A Covid ainda nos levou Tarcísio Meira, o herói do Brasil profundo e símbolo da televisão. Em Cannes, pelo menos, lavamos a alma com um protesto após a sessão de “O Marinheiro das Montanhas”, novo filme de Karim Aïnouz, com uma faixa que falou o que milhões pensam.  

3) DEMOCRACIA EM RISCO 

Jair Bolsonaro tentou fazer um novo 1964 em 2021.  

No melhor estilo “o inferno são os outros”, tensionou as relações com todos os Poderes da República ao máximo possível, alegou fraude nas urnas eletrônicas com o intuito de descredibilizar as eleições do ano que vem, culpou governadores e prefeitos pela crise econômica e cooptou as Forças Armadas para dar o sonhado golpe de Estado.   

Tinha até data: 7 de setembro. Sorte a nossa Bolsonaro ser de uma incompetência ímpar, inclusive, para dar um golpe mesmo com o apoio de setores importantes da sociedade. Dali em diante, perdeu apoio, viu a economia ruir, a inflação subir e, hoje, com a reeleição praticamente impossível. Os danos à democracia, porém, demorarão a sarar.  

O mundo do cinema, claro, notou este desastre de um país outrora admirado. Na Suécia, o Festival de Gotemburgo incluiu o Brasil em um fundo de apoio a cineastas de regiões que têm a liberdade de expressão ameaçada. A proposta era o apoio desde o desenvolvimento até a distribuição de longas e séries dos cineastas. Estamos juntos com Ucrânia, Irã, Iraque, Síria e Turquia.

4) LUTA CONTRA A LEI PAULO GUSTAVO 

 

Somente em um governo anticultura para fazer campanha contra um projeto de lei capaz de colocar bilhões de reais no setor cultural. O Governo Bolsonaro fez justamente isso ao se opor firmemente contra a Lei Paulo Gustavo.  

Proposta do senador e líder do PT na casa, Paulo Rocha (PA), a lei destina R$ 3,8 bilhões para a cultura com o intuito de mitigar os efeitos da pandemia no setor. Representantes do Governo Bolsonaro, porém, se opuseram publicamente ao projeto.   

Mário Frias, por exemplo, falou no Twitter que lutaria contra o projeto, alegando até inconstitucionalidade. Filhote do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro não poderia perder a oportunidade de “mitar” e chamou a proposta de “Covidão da Cultura”. Toda esta pressão fez efeito e a Lei Paulo Gustavo foi retirada de pauta três vezes somente no segundo semestre graças ao trabalho do líder do Governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB).   

No fim do ano, entretanto, o Senado resolveu tirar o projeto da gaveta e a Lei Paulo Gustavo avançou com 68 votos a favor e apenas 5 contra. A Câmara dos Deputados já aprovou regime de urgência, deixando a votação final para o retorno do recesso parlamentar previsto para fevereiro assim como a Lei Aldir Blanc 2.  

Ainda assim, o mimimi continuou nas redes com o “grande” André Porciuncula Alay, capitão da PM alçado ao cargo de secretário nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (?), fazendo escândalo contra a lei.

Mas, é como dizem: o choro é livre… 

A luta de produtores e diretores dentro da Agência Nacional de Cinema (Ancine) continuou em 2021. Depois de Wagner Moura enfrentar todo o tipo de dificuldade burocrática para lançar “Marighella”, chegou a vez de Lázaro Ramos encarar situação semelhante com “Medida Provisória”. 

Alvo de ataques de Sérgio Camargo, o sujeito à frente da Fundação Palmares,  em março deste ano após obter prêmios em festivais internacionais, “Medida Provisória” lida com entraves na Ancine para poder, finalmente, estrear. Segundo produtores do filme em carta publicada nas redes sociais, “ao longo de mais de um ano foram trocados com a agência dezenas de e-mails, checados o recebimento e andamento de protocolos, bem como foram realizadas consultas processuais”, porém, sem nenhum tipo de retorno. Após a reclamação, a Ancine apontou que o longa estava em processo de análise e transcorria normalmente na entidade. 

Por enquanto, “Medida Provisória” foi exibido no Brasil apenas no Festival do Rio, onde levou o Prêmio Especial do Júri. A expectativa é que a estreia ocorra mesmo em 2022. Mas, Lázaro Ramos não foi o único “privilegiado”.  

A autorização para a captação de recursos de “O Presidente Improvável”, documentário da Giro Filmes sobre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, foi negada em julho deste ano pela Ancine. A justificativa foi um suposto uso político de natureza propagandística pela produtora, segundo voto do ex-presidente interino da agência Mauro Gonçalves de Souza.  

A repercussão do caso na mídia e nas redes sociais com a suspeita de censura pairando sobre a medida serviu como pressão importante. Em outubro, o próprio Gonçalves de Souza reformulou o voto e decidiu pela autorização da produtora captar R$ 3,3 milhões. 

 6) CRISE NA ANCINE 

A censura travestida de bur(r)ocracia passou longe, bem longe de ser o único problema na Ancine. Justo no ano em que completou duas décadas, a agência encarou uma crise atrás da outra. 

Indicador criado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) para avaliar governança, gestão e transparência dos órgãos federais, o Índice Integrado de Governança e Gestão Pública 2021 colocou a Ancine na penúltima posição entre 11 entidades avaliadas da gestão pública federal. Para grau de comparação, segundo a coluna Farofafá do grande Jotabê Medeiros, na Carta Capital, a agência do cinema obteve índice de 48% em governança e gestão; a média entre as avaliadas ficou em 60%. Em capacidade em gestão de pessoas, a Ancine ficou com 25%, bem abaixo dos 70% atingidos por muitas agências.  

Em vez de melhorar tais problemas, a Agência Nacional do Cinema resolveu caçar problemas e cogitou a criação de um Manual de Conduta nas Mídias Sociais para os servidores. Traduzindo: uma tentativa de censura para evitar críticas públicas de profissionais contra os retrocessos dentro da Ancine. A cortina de fumaça não foi adiante após o caso vir à tona gerando muitas críticas nas redes sociais.

Por outro lado, mesmo com um estudo feito pela própria Ancine de que o custo de uma transferência total do Rio de Janeiro para Brasília poderia custar R$ 1,5 bilhão aos cofres públicoso governo colocou o prédio da agência na Cidade Maravilhosa à venda em agosto  

Todo este descontrole (proposital, diga-se) levou o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, em resposta a um pedido da Ordem dos Advogados do Brasil, a intimar Bolsonaro e Mário Frias a prestarem explicações sobre a crise na Ancine e também na Lei de Incentivo à Cultura (antiga Lei Rouanet).  

7) ISENÇÃO DO CONDECINE 

Até quando Bolsonaro acerta, ele erra. E eu posso provar.  

O audiovisual brasileiro recebeu um duro golpe do Legislativo em maio. A Câmara dos Deputados aprovou a Medida Provisória 1018/20 que, entre outras determinações, inclui uma regra que isenta as plataformas de streaming (Netflix, Disney+, Amazon Prime, Apple+, etc) de pagarem a Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional). 
 
Para quem não conhece, a Condecine foi criada para fomentar o desenvolvimento do setor audiovisual no país, sendo a sua arrecadação destinada ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). O tributo é cobrado de empresas da própria área de cinema, Tv aberta e fechada e “outros mercados”. 
 
Foi justamente neste espaço de “outros mercados” que residia a dúvida sobre se o mercado de vídeo-sob-demanda se enquadrava e deveria pagar a Condecine ou não. O relator da MP, deputado Paulo Magalhães (PSD-BA), fez um parecer contrário à inclusão das plataformas de streaming neste conceito. Autor da emenda que deu origem à regra, o 1º vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), ressaltou que não haveria renúncia fiscal, já que a Condecine hoje não é prevista em lei para as plataformas de streaming. “Quando a legislação da Condecine foi criada, não existia o serviço de streaming. Não existe aqui nenhuma renúncia fiscal”, disse. 
 
Em surto de raro bom senso, Bolsonaro vetou a isenção da Condecine em junho, porém, o governo foi incapaz de articular para manter o veto e o Congresso o derrubou em setembro. 
 
Ah, e se você pensa que a aprovação da MP evitará possíveis aumentos futuros da mensalidade de seu streaming, vá sonhando… 

8) MÁRIO FRIAS ARMADO 

Para quem já teve Gilberto Gil como ministro da Cultura, ter Mário Frias como secretário do setor mostra bem o buraco em que nos metemos. E em 2021, ele passou dos limites do absurdo.  

Matéria publicada pelo UOL em maio trazia a informação de que Frias andava armado com o equipamento visível na cintura dentro da secretaria em meio aos servidores. Como se não bastasse, funcionários relataram um clima de tensão no órgão com casos regulares de ofensas e gritos.  

O secretário alegou que o porte de arma se faz necessário por conta do clima político tenso no Brasil e pelas pressões diversas que o deixam em estado de alerta por temor à integridade física dele. 

Imagina se a moda pega…  

9) DENÚNCIA DO CONSELHO SUPERIOR DE CINEMA 

A nomeação de membros da sociedade civil no Conselho Superior do Cinema veio do jeito que se esperava: nomes pouco relevantes para a cadeia produtiva do audiovisual e ligados ao bolsonarismo. Diretor do documentário “Olavo tem Razão”, Mauro Ventura estava na lista assim como profissionais de empresas audiovisuais estrangeiras, advogados de empresas estrangeiras, entre outros.  

Associações e sindicatos de todo o Brasil se opuseram a esta composição do Conselho em uma carta pública. “É como ter como membro do Conselho do Banco do Brasil, e com direito a voto, um executivo do Citibank. Ou ter no Conselho da Petrobras um executivo da British Petroleum”, diz um trecho da carta. Vale destacar que o Conselho Superior de Cinema é o órgão colegiado do governo que elabora políticas públicas no âmbito do audiovisual.  

Já em setembro, o Ministério Público Federal notificou Mário Frias a convocar o Conselho em até 30 dias visando a retomada das reuniões. Segundo o MPF, o grupo não se reúne desde de dezembro de 2019, gerando atraso na elaboração do Plano de Diretrizes e Metas para o Audiovisual (PDMA). A Ancine informou que as reuniões tinham sido retomadas naquele mesmo mês.  

10) COBRANÇA DE ALY MURITIBA 

Por fim, o Oscar voltou a ser assunto de críticas para a gestão do governo Bolsonaro e da Ancine. Após a exclusão de “Deserto Particular” na shortlist de Melhor Filme Internacional, Aly Muritiba foi ao Twitter agradecer a torcida de cinéfilos e críticos pelo filme, mas, teceu importantes comentários sobre o processo de escolha do país.  

O diretor criticou a demora da definição do representante brasileiro rumo ao Oscar, o que dificulta acertos de distribuição para uma melhor campanha junto aos membros da Academia. Muritiba foi ainda mais incisivo na questão financeira: sem dinheiro, não há como ir longe.  

Nisso, ele recordou a importância do apoio do governo sul-coreano para “Parasita” ser feito e como a produção viajou o mundo a ponto de ganhar Cannes 2019 e o Oscar 2020. E completou de forma muito, muito clara: 

Provoco ainda a Ancine a pensar na criação de uma linha de fomento para financiar campanha dos próximos filmes escolhidos para corrida. Ou a gente faz direito, ou seguiremos nos iludindo.  Os filmes brasileiros são potentes, inventivos, instigantes. Mas pra estarmos em lugares como o Oscar é preciso que sejamos vistos e apoiados pela ANCINE como tal. 

Aly Muritiba

Diretor de "Deserto Particular"

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