Agora que o muito falado e longamente aguardado Trama Fantasma, de Paul Thomas Anderson, saiu (embora você tenha ouvido falar mais na pranteada despedida de Daniel Day-Lewis, outra daquelas decisões irrevogáveis até que se mude de ideia, do que no filme em si), podemos ficar estatelados de novo: trata-se de mais um estudo impecável, misterioso, sexy e perturbador do artista americano, que, lá pelos idos de 1997 (com Boogie Nights: Prazer sem Limites), partiu para uma longa viagem transatlântica sobre paisagens áridas da alma, e não voltou mais.

Como todos os trabalhos do cineasta, Trama não é uma obra facilmente acessível, nem digerível, nem se presta a soluções fáceis ou pensamentos ligeiros. Como um banquete preparado por um grande chef, a obra é para ser reservada, viajada, aventurada, descoberta e triunfalmente saboreada. Bebida e bruncheada também, para os finos.

Pois foram desses longos e fascinantes minutos entregue à miríade se sensações evocadas por Trama Fantasma que surgiram as reflexões a seguir, uma costura nada harmoniosa, nem muito menos ectoplásmica, mas que ainda assim pode mexer com os brios de vocês, leitores (não sei se isso é uma coisa positiva).


O velho efeito do artista torturado: como em todo o resto, Trama Fantasma não é bem assim

À vista mais superficial, Trama Fantasma é a história de um artista genial e atormentado, o estilista Reynolds Woodcock (Day-Lewis), que inflige seus demônios sobre a jovem que o admira e vem a se tornar sua companheira, a garçonete Alma Elson (Vicky Krieps). Um macho tóxico e uma fêmea com uma atração irresistível por seus caprichos – a mesma história de tantos filmes, livros e canções, tão atual que está aí, faturando alto, na série 50 Tons de Cinza (o roqueiro americano Todd Rundgren até batizou um de seus melhores álbuns com o título de The Ever Popular Tortured Artist Effect). Não sei vocês, mas eu não queria ver essa história de novo – e, felizmente, não é o caso em Trama.

A dinâmica homem X mulher no novo filme de Anderson é salutarmente ambígua, maliciosa, cheia de subentendidos. Melhor, ela reserva um papel assertivo para Alma – bem diferente da mocinha assoberbada pelo homem machucado e seus gostos peculiares, ela se impõe, confronta, fere, iguala.

Masculinidade destrutiva não é exatamente um tema novo para o diretor: temos o “consultor” motivacional que roga aos homens inseguros e fracassados de sua plateia que exijam “respeito ao pau”, vivido por Tom Cruise em Magnólia (1999); o prospector cuja sede de poder drena poços de petróleo e vidas inteiras, em Sangue Negro (2007), com o mesmo Daniel Day-Lewis; ou, no exame mais agudo do diretor, a dança entre dois homens retorcidos espiritual e sexualmente (Joaquin Phoenix e Philip Seymour Hoffman), em O Mestre (2002); os exemplos abundam. Mas, pela primeira vez em sua obra, uma mulher se levanta e assume a coreografia – e só um talento com a força elemental de Vicky Krieps para gerar a mesma eletricidade de DDL e sair inteira (mais sobre isso no último tópico deste texto).

No ano do #MeToo, do #Time’sUp e da ascensão geral das vozes femininas contra a masculinidade tóxica de Hollywood, Trama Fantasma joga um novo e bem-vindo elemento ao velho efeito do artista torturado – mais uma das muitas subversões de uma história que pode ser considerada a mais “clássica” e “romântica” que Paul Thomas Anderson fez até aqui. Claro que, como em tudo sobre o filme, não é bem assim.


Guerra dos sexos? Melhor seria falar em batalha dos chefs

Já reparou como todos os momentos mais climáticos da relação entre Alma e Reynolds se dão na hora de comer? Não só a comida tem um papel essencial na dinâmica de poder que se estabelece entre os dois, como, para uma história de relacionamento tão misteriosa e ambígua, ela acaba sendo a manifestação mais concreta de erotismo do filme.

Reynolds e Alma sentam à mesa – e a quantidade e volume dos pratos, ou a decisão de cozinhar aspargos em manteiga ou óleo ecoam o tumulto íntimo e mútuo do casal durante toda a história. Os planos longos, luxuriantes de PTA sobre as mesas de refeição, a água fervente das panelas, os famigerados cogumelos – toda vez que há comida em cena em Trama Fantasma, há algo, para cunhar uma expressão original, de indizivelmente intenso prestes a explodir.

Eis uma das muitas dimensões hitchcockianas do romance como concebido em Trama. Em meio a tanto pretenso erotismo domesticado e inautêntico – dois dos casais mais famosos do cinema americano recente, a humana Bella e o vampiro Edward, da série Crepúsculo, ou a modesta Anastasia e o milionário Christian, do já citado 50 Tons, são tão desprovidos de cor, nuance, elegância e ressonância emocional quanto as matronas vulgares que encomendam os vestidos de alta costura de Woodcock –, Anderson conjura a mesma potência sexual das cores, cheiros e texturas dos clássicos do diretor inglês (pense numa das cenas mais eróticas do cinema inteiro, em que James Stewart, siderado de paixão [e outros sentimentos menos elevados] veste, em vez de despir, a personagem de Kim Novak em Um Corpo que Cai [1958]).

Haute couture e la sèptieme art: o namoro entre o cinema e a moda entra na fase adulta

Por algum motivo, o cinema teimou por décadas em enxergar a moda como uma coisa caricata, uma fauna habitada por estilistas excêntricos, modelos fúteis e prima-donas extravagantes da crítica. Um filme não tão antigo, Prêt-à-Porter (1993), de Robert Altman, mostra bem o desprezo e o escárnio com que a intelligentsia do cinema preferia enxergar esse mundo – que é tão reflexo de seu tempo e lugar e atiça tantos ímpetos criativos quanto qualquer outra forma de arte, além de ser uma indústria muito mais global, inclusiva e geradora de empregos que a sua prima da tela grande.

Mas, felizmente, a década passada trouxe um – como dizer essas coisas – despertar para a variedade artística e humana dessa cultura, tão presente entre nós, e ao mesmo tempo tão distante e rarefeita. De paródias que levavam seu universo muito mais a sério – e por isso mesmo eram muito mais engraçadas –, como Zoolander (2001), a filmes de sucesso que proclamavam a relevância cultural dessa indústria, como O Diabo Veste Prada (2006), a moda e seu processo criativo passaram a ser tão fascinantes – e válidos – para o cinema quanto a literatura, a pintura ou a música. Basta lembrar dos dois filmes sobre o revolucionário da moda Yves Saint Laurent lançados em 2014.

Agora, com Trama Fantasma, chegamos à maturidade desse processo. O personagem de Daniel Day-Lewis, o designer de alta-costura Reynolds Woodcock, é um criador tão convulso, devotado e implacável quanto outros artistas atormentados do cinema, do Mozart de Amadeus (1984) ao Jackson Pollock de Pollock (2000).

Criar roupas pode ser uma forma inflamável em si mesma de perseguir a Beleza, uma nova modalidade de pacto faustiano, uma via particular e idiossincrática para se vasculhar os recônditos da alma – ou, para dizer de uma forma que teste menos a sua paciência, leitorx, um assunto tão dramático quanto qualquer outro. Paul Thomas Anderson cantou a pedra.

Daniel Day-Lewis pede game over: o fim de um ciclo para Anderson também?

Por razões que não estão claras nem pra ele mesmo, Daniel Day-Lewis jogou a toalha após Trama Fantasma. Se for verdade – e dedos estão cruzados em todo o mundo do cinema para que não seja, embora o ator inglês seja estouvado o suficiente para seguir essa decisão –, a nova parceria com o diretor americano terá sido seu testamento artístico.

E, em assim sendo, que jeito maravilhoso de ir embora! Há tantos detalhes e matizes na atuação de Day-Lewis que daria para rever o filme várias vezes, só para observar a maneira como ele enriquece uma fala, uma inflexão, um gesto específico de seu personagem. Seu Reynolds convence quando precisa ser um artista sensível e meticuloso (observe as feridas nos dedos do ator, representando anos de trabalho com agulhas); um homem manipulador, controlador e infeliz; uma fachada impecável de polidez e discrição e, ao mesmo tempo, um homem rude, dado a explosões de raiva e palavrões que constrangeriam um estivador; um misantropo amargo em plena saúde e uma criança frágil e amorosa na doença; e muitas coisas mais. Nenhum outro ator daria tanto à criação de Anderson, como só Day-Lewis daria conta da intensidade fanática do minerador Daniel Plainview em Sangue Negro.

Não é ilegítimo pensar que o fim dessa parceria também marque uma nova fase para Paul Thomas Anderson. Embora ele tenha emplacado uma colaboração igualmente frutífera com Joaquin Phoenix (dos estupendos O Mestre e Vício Inerente [2014]), DDL é o espelho mais exato – dir-se-ia uma alma irmã – do perfeccionista e incrivelmente ambicioso cineasta de Sangue e Trama. Juntos, nesses dois filmes, eles dizem mais do que quase todas as parcerias ator-diretor célebres do cinema.

E Day-Lewis, na flor de seus 60 anos, mas já há bastante tempo aclamado como um dos maiores atores que o cinema já viu, sai de cena not with a whimper, but with a bang.


Vicky Krieps: quem pode duelar e pedir empate com Day-Lewis? Ela pode

E quem é Vicky Krieps? Foi a pergunta que, imagino, milhões se fizeram após presenciar o embate com o peso-pesado DDL em Trama. Recém-saída de uma participação elogiada em O Jovem Karl Marx (2017), a atriz alemã capturou a atenção de Anderson numa apresentação teatral, onde as mesmas qualidades de seu trabalho como a não-tão-frágil Alma Elson – a sutileza, o realismo, a confiança silenciosa, a impetuosidade – a levaram a ser chamada no ato.

Não deve ser fácil para um ator relativamente jovem e inexperiente – Krieps estrelou os seus primeiros curtas há meros dez anos – ser jogado na mesma panela que o veterano inglês, conhecido por seus métodos excêntricos (para não dizer neuróticos) de trabalho, mas Vicky não se deixou abalar. Uma das revelações da atriz foi a de que Daniel Day-Lewis pediu que eles não ensaiassem juntos, deixando para se conhecer já na hora de gravar as cenas, a fim de que a espontaneidade das interações entre os personagens chegasse tão fresca quanto possível à tela.

Mas Krieps confiou em seus instintos – e, assim como Paul Dano em Sangue Negro, outro dos raros parceiros de cena de Day-Lewis que não foram completamente eclipsados pelo britânico (Leonardo DiCaprio, por exemplo, tentou e perdeu em Gangues de Nova York [2002]), ela saiu engrandecida da experiência.

Mesmo sem ter recebido o mesmo reconhecimento de DDL e de Lesley Manville, que vive a irmã do protagonista e está atualmente no páreo de Atriz Coadjuvante no Oscar, Vicky Krieps é uma das gratas revelações de Trama Fantasma – e um nome a ser acompanhado com atenção nos próximos anos. Vá por mim.