A seção “O Segundo Sexo” é dedicada a filmes dirigidos por mulheres. Confira mais textos aqui.

O evento-ápice que marca a mudança de status da sexualidade de uma mulher é a perda do hímen, processo comumente doloroso do ponto de vista físico. Porém, no filme “Para minha irmã!”, da diretora francesa Catherine Breillat, essa dor carrega consigo um simbolismo mais profundo na psique das personagens. Mas vamos às preliminares primeiro…

A trama do longa acompanha duas irmãs adolescentes: Anaïs (Anaïs Reboux) e Elena (Roxane Mesquida). Elena é a irmã mais velha, de quinze anos, e possui uma beleza estonteante, o que lhe garante pretendentes com facilidade. Embora ela tenha consciência desse “poder”, sua mentalidade corresponde à idade cronológica.

Já Anaïs é o completo oposto: ela está totalmente fora dos padrões de beleza, come compulsivamente e parece, à princípio, ter mesmo algum tipo de déficit mental. Porém, essa é apenas uma artimanha para que ela não tenha que lidar com as outras pessoas, pois na verdade a menina, de catorze anos, é mais madura que aparenta ser. Quando a família das meninas passa as férias em uma cidade interiorana, Elena consegue a chance de ter sua primeira relação sexual com um namorado mais velho, Fernando (Libero De Rienzo), e Anaïs também vivencia o impacto dessa mudança.

Sexo como contrato e “teatro”

Se para um rapaz adolescente a perda da virgindade é um marco culturalmente aceito como positivo, para uma moça, é justamente o contrário, e é nisso que foca “Para minha irmã!”. Elena reflete o dilema incutido às mulheres de preservar seu prêmio (o hímen), cuja perda é marcada pela exigência do amor mútuo, e não pelo desejo sexual em si. O sexo é, então, um teatro no qual a adolescente sublima seu “tesão”, travestindo-o de amor puro e eterno, uma vez que Elena repete e exige de Fernando que eles, ambos bastante jovens, fiquem juntos para sempre. A mentira perpetrada por esse acordo implícito é ainda mais evidente pelo fato de que o casal mal consegue se comunicar, pois ela é francesa e ele, italiano.

Ao contrário do que um rapaz faria, Elena é socialmente incentivada a esconder o máximo possível a sua não-virgindade. Os pais nem desconfiam do que acontece no quarto da menina, ainda mais porque ela divide o espaço com Anaïs. É pelo olhar da irmã gorda e desengonçada que o espectador vê a relação de Elena e Fernando como ela realmente é: uma mentira. Anaïs espiona os dois com um misto de curiosidade, inveja e desgosto, pois percebe que o desejo sexual é o que realmente orienta os jovens. Por ver-se de fora de toda sorte de interação social, ela as observa melhor, a ponto de afirmar à irmã, em dado momento, que gostaria de perder a virgindade com alguém que não amasse, pois entende que a primeira vez dificilmente seria com alguém com quem ficaria em longo prazo.

Ao longo do filme, são várias as pistas que mostram o quanto Anaïs tem certa noção (embora não tenha total consciência) da separação entre desejo e amor. A menina, em outra cena, nada numa piscina de uma escada a outra, fingindo que estas são amantes e que não consegue decidir com quem ficar.

Ela reproduz algo das relações dos adultos, “brinca” com os sentimentos de seus parceiros-escadas e, nessa brincadeira, coloca-se como sujeito ativo da própria e ainda imatura sexualidade. Anaïs, ao contrário de Elena, recusa-se a ser levada pelas imposições sociais que determinariam seu comportamento perante a própria libido por ter certa liberdade: é considerada tão feia e avoada que dá a impressão de sequer possuir desejo sexual. Se o sexo é performance, ela começa a ensaiar, sem perceber diretamente, o arsenal de mentiras que pode utilizar.

O simples que diz o complexo

Essa gama de ideias complexas são apresentadas por Breillat em um formato tão simples que impressiona. O espectador desatento pode muito bem assistir a todo “Para minha irmã!” e não identificar nada além de uma história de duas meninas tendo as férias mais entediantes já vistas no cinema e ficar por isso mesmo. Porém, a diretora escolhe trazer todos os seus temas a partir de signos específicos, e nada é apenas o que parece.

A cena em que Anaïs canta uma canção na praia enquanto vive a angustiante espera pela irmã, que está ali num encontro amoroso e a abandona, é um exemplo. Toda frustração da menina é exposta nas cores desbotadas, no quadro patético, na expressão do olhar de Reboux, enfim, nos pequenos detalhes que exigem um espectador que compre a proposta do filme totalmente, já que Breillat parece mesmo querer instigar com a lentidão, a insistência em poucos cortes, diálogos longos e planos abertos, que se arrastam e levam as situações a um limite psicológico.

Tomemos outro exemplo: a sequência em que Elena perde a virgindade. Trata-se de um conjunto de cenas longas, no qual mesmo um jovem adulto consegue identificar como Fernando usa de “conversa mole” e palavras melosas para convencer a menina. No entanto, o fato daquela conversa se estender tanto, e de termos que “aguentar” o quão enfadonha ela é, surge como metáfora. A imposição social faz com que a mulher se submeta a isso, que ela demande promessas de amor eterno e compromisso para vivenciar algo que os homens fazem impulsivamente. Eles enveredam nesse jogo ao passo que, em termos de narrativa, a duração das cenas contribuem para a atmosfera de opressão à sexualidade feminina. Um recurso simples, mas extremamente efetivo.

O hímen é apresentado repetidas vezes como um troféu ou tesouro metafóricos, como vemos em filmes tão variados como “Beleza roubada”, de Bernardo Bertolucci, “Segundas intenções”, de Roger Kumble, ou “As virgens suicidas”, de Sofia Coppola. Em “Para minha irmã!”, no entanto, ele é quase uma maldição: as cenas de sexo geram desconforto, e não prazer, e a exposição do corpo da personagem adolescente passam longe de despertar algo prazeroso ao espectador; a relação entre o jovem casal vai ladeira abaixo, e não se fortalece.

Ironicamente, o que se transforma é a relação das irmãs, que se tornam mais próximas por partilharem um segredo e aprenderem, juntas, como lidar com ele. Breillat, porém, não chega nem perto de apresentar uma sororidade piegas e forçada. A direção e roteiro sóbrios geram um filme que envereda pelo naturalismo, garantindo uma boa dose de passivo-agressividade à relação entre as meninas, mérito também da boa atuação da dupla Reboux e Mesquida.

O final. Ah, o final…

Avançar mais na análise de “Para minha irmã!” seria apontar inevitavelmente para a sequência final do longa, e seria estragar o seu impacto. Em termos de narrativa, basta dizer que ela destoa totalmente do resto do filme, mas em termos de temática, apresenta sua metáfora mais poderosa para reforçar o que Anaïs defende ao longo do filme em falas e atitudes: se o sexo a uma mulher é objeto de culpa e um jogo de poder no qual o feminino sempre está em desvantagem, ela trapaceará para se manter com o domínio de sua própria sexualidade. Feia, gorda, porém dona de si, num papel ativo, e não de um ser a quem se demanda constante autoproteção. O que representa isso no filme? Uma longa e desagradável viagem de volta para casa.

Não por acaso, a mensagem se passa em uma metáfora de violência absurda nessa cartada final de Breillat, que também assina o roteiro. Ao envolver o discurso numa sequência tão destoante e brutal, a diretora parece advertir o espectador dos riscos de tal ousadia, trabalhando com a noção de desconforto até os segundos finais, como quem questiona: “é possível jogar esse jogo com alguma vantagem?”.