“Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração…e quem irá dizer que não existe razão”.

Os versos da letra de Eduardo e Mônica, do grande Renato Russo não apenas dialogam muito bem com Procura-se Amy, terceiro filme de Kevin Smith, como também com a sua carreira cinematográfica. Afinal, quem um dia iria imaginar, em plena razão, que aquele Smith, da década de 90, considerado ao lado de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, um dos mais talentosos realizadores do cinema norte-americano no período, seria o mesmo responsável por várias tranqueiras na década seguinte como Pagando Bem, o que Mal Tem, Tiras em Apuros e Tusk: A Transformação?

Rever Procura-se Amy, uma das minhas comédias favoritas da minha adolescência, ajudou a bater à famosa bad trip, por presenciar a total ausência de razão (e bom senso) de como o diretor tem gerenciado a sua carreira atualmente em comparação aos anos 90. Em contrapartida, esta constatação veio acompanhada por um sentimento singular que o filme não ficou datado e continua marcante perante os olhos dos amantes das comédias românticas, tudo porque na metade de 90, Smith sabia como poucos, observar e discutir os medos e inseguranças da Geração X.

Amy – como parte da letra de Eduardo e Mônica – é a razão dos motivos que impulsionavam Smith a fazer cinema naquele período: É um filme feito com muita paixão e sensibilidade, na qual o diretor coloca toda a razão das coisas feitas pelo seu coração cinéfilo nerd – o amor pelos quadrinhos e a cultura pop –  para fazer um filme bonitão sobre as pessoas e seus sentimentos, inserido numa verborragia alucinante de ótimos diálogos a serviço de um filme que soa tão despretensioso na sua comédia romântica como maduro e delicado no seu drama de relacionamentos.

No enredo, o imaturo Holden (Ben Affleck) é responsável por uma série de quadrinhos de relativo sucesso, juntamente com o amigo Banky (Jason Lee). A vida da dupla muda, quando Holden conhece e se apaixona Alyssa (Joey Lauren Adams, namorada do diretor na época), uma jovem, que diferente do rapaz, mostra-se segura das suas preferências e escolhas afetivas e sexuais. O relacionamento dos três sofrerá mudanças drásticas, depois que o passado de um deles vem à tona.

A verdade é que se Smith não tivesse jogado sua carreira no ralo nos últimos dez anos, Procura-se Amy talvez teria até um destaque maior hoje, 20 anos depois do seu lançamento, com o seu direito assegurado na lista das melhores comédias da época. É uma produção que não deve nada alguns queridinhos cinematográficos como Alta Fidelidade, 500 Dias com Ela e Scott Pilgrim contra o Mundo, até porque a obra de Smith se sobressai pelo seu conteúdo sensível, construído solidamente por um roteiro habilidoso, na forma empática em que aborda temas universais que ressoam forte no público como amor, sexo e amizade.

É interessante que uma das fortalezas do filme é a densidade como Smith cria diálogos geniais, que dosam um conteúdo delicado a uma temática liberal ousada em discutir a sexualidade de forma franca e despudorada, sem preconceitos, através de ótimas reflexões sobre o comportamento humano e o cuidado como desenvolve os personagens, dando um formato inteligente à produção. É difícil você não se divertir com os momentos espirituosos como a teoria de que Star Wars é racista e homofóbico (dita pelo ativista negro interpretado pelo ótimo Dwight Ewell) ao mesmo tempo que a emoção bate na porta através de momentos sérios que tratam de questões abertas sobre sexo, bissexualidade, penetração e relações tóxicas amorosas, fugindo dos clichês habituais do gênero, para manter o olhar sempre original do diretor.

Isso pode ser bem observado na premissa de Amy, que apesar de indicar uma narrativa tradicional dentro do ramo das comédias românticas, ela se revela versátil em desconstruir as diversas perspectivas e estereótipos no gênero. Smith brinca com a própria dinâmica de relação entre os personagens, levando o espectador a imaginar que há um flerte sexual entre Alyssa e Holden em um primeiro momento ao focar no ponto de vista masculino – ele como a maioria dos machos imaturos, não entende as entrelinhas – para depois fazer uma revelação magistral na cena do bar.  O próprio dilema do filme, que de início, sugere se relacionar a opção sexual de Alyssa, na verdade tem como conflito principal a pura insegurança (machista) masculina de Holden.

Um fato que sempre me agrada em Amy é como ele estrutura o relacionamento amoroso da forma mais real possível: dos momentos divertidos e legais do relacionamento; aos momentos românticos de pura paixão até chegar às situações complicadas e dolorosas. Há muito no filme, de capturar o espírito da juventude dos anos 90, nas suas relações amorosas e pessoais de forma bem-humorada, sem deixar de lado a tragédia pessoal, marcada por personagens inseguros, cheios de dúvidas e medos. Olhando para os dois filmes anteriores de Smith e comparando com Amy você enxerga esses debates com um denominador comum entre eles: a geração X caracterizada pelo tédio sempre presente no universo de filmes do diretor como Barrados no Shopping e O Balconista; e os personagens masculinos com grandes dificuldades de amadurecerem como o Dante Hicks, o atendente de loja de O Balconista e o próprio Holden de Amy

Se isso já coloca a obra em um patamar mais elevado, o roteiro de Smith mostra o quanto o seu realizador estava inspirado na época. Procura-se Amy na década de 90 já era um filme bem “pra frente” ou atirado, por trazer para cerne do debate, assuntos atuais e relevantes como o espírito da liberdade sexual, frente o conservadorismo moral e religioso – e pelos tempos atuais em que vivemos 2019 não parece tão diferente de 1997 – e mostrar sob a ótica masculina, como os homens podem ser divertidos, mas também infantis e egocêntricos. Há também a força de evidenciar, que nas relações amorosas, o que importa não é quem você ama e sim como você lida com suas emoções, o que serve para Smith discutir de que maneira os estereótipos e preconceitos afetam os laços e sentimentos construídos, assim como a difícil aceitação das escolhas passadas daqueles que amamos. É curioso que como escritor, Kevin crie homens extremamente babacas e inseguros interagindo com mulheres fortes, sexualmente livres e independentes, com valores morais contundentes, o que revela que dentro do universo dos seus filmes, as mulheres são sempre mais interessantes que os homens.

Essas boas reflexões proporcionadas pelo texto facilitam que o diretor-roteirista crie cenas que dialoguem diretamente com o coração do espectador, como aquela que desmonta a visão preconceituosa que temos da bissexualidade, quando Alyssa revela com delicadeza a Holden, as razões da sua escolha sexual; ou a sequência que transita entre a melancolia e a diversão quando o próprio Smith na figura de Silent Bob – personagem frequente nos seus filmes – explica em uma belíssima história, a razão do título do filme. Contudo, é o monólogo amoroso – que revela o talento nato de Smith para os diálogos –  na qual Holden se declara para Alyssa dentro do carro sob forte chuva – uma analogia que reflete a paixão avassaladora que ele sente por ela – a cena mais inesquecível do longa-metragem.

É verdade que Smith tem um elenco em mãos que também ajuda. Ouso a dizer que o Holden de Affleck é um dos seus melhores papéis na carreira, por expressar bem a insegurança e carisma do personagem. Se Jason Lee é responsável pelos acertos da parte cômica, cabe Joey Lauren ser o ponto lacrador do filme por construir sua Alyssa longe dos estereótipos românticos para aproximá-la de uma complexidade dramática real ao torná-la uma das composições femininas mais maduras do cinema recente.

Pouco importa se Procura-se Amy desliza na parte final, muito em razão do ritmo irregular. Pessoalmente defendo a parte final, ainda que entenda as pessoas reclamarem dela, devido a proposta irreal que Holden faz para Banky e Alyssa. Talvez faltou mais precisão dramática por parte da direção em tornar a cena mais emblemática, não é à toa, que Smith é mais lembrado pelo seu talento como roteirista do que como diretor. Independentemente de qualquer coisa, Procura-se Amy está além de uma simples comédia. Retrata os relacionamentos amorosos de forma bem verdadeira e profunda, com Smith revelando enorme paixão em abraçar os seus personagens para mostrar ao público, que cada um de nós carrega um pouco de Holden (na insegurança e nos medos), de Alyssa (na maturidade e coragem em assumir nossos desejos), de Banky (nos preconceitos e forma espirituosa de encarar o mundo).

Pode até não ser o melhor filme de Smith, mas sem dúvida é o seu melhor roteiro, por criar algo bem pessoal e especial que mostra que a arte pode retratar as nossas relações amorosas de forma fidedigna. Parodiando Holden no filme, eu não preciso de uma pintura de pássaros para me lembrar que Kevin Smith na década de 90 fez uma das comédias românticas mais bonitas e madura dos últimos tempos.