De vez em quando lemos, ou ouvimos dizer, que determinado filme é “cult” e talvez nos perguntemos o que isto significa. É verdade que um filme, como todas as expressões artísticas pictóricas, possibilita inúmeras interpretações e que essa denominação tenderia a ser mais uma. Mas cremos que, para além de um rótulo, um filme recebe essa condição por propor algum tipo de marca, característica ou atributo que inove ou experimente uma nova forma do fazer cinematográfico; um rompimento com modelos convencionais de narrativas no cinema; uma dimensão qualitativa ao cinema elevado à categoria de obra artística. Ou algumas dessas características juntas.

Como o nome expressa, um filme “cult” é um filme que foi ou é cultuado, que é reverenciado por muitos cinéfilos e críticos de cinema por suas características que acentuam ou uma diferença, ou uma originalidade, ou uma transgressão às formas convencionais de realização, extravasando o domínio pessoal, do gosto mais marcado e singular, para uma área de interesse comum e suficientemente restrita de não banalização no mercado consumidor. Dessa forma, parece ser um filme restrito a um gueto de apreciadores do cinema ou de “estudiosos” da arte cinematográfica. Mas não entendo assim.

Para além dos contextos sociais, das vivências estéticas e das causas psicológicas que um filme pode nos proporcionar, provocando uma reação simultânea de beleza e estranheza, é o conjunto dos fatores históricos, estéticos e sensoriais que vão configurar a condição de “cult”, exatamente por continuar permanecendo “vivo” em nossas mentes, seja de forma objetiva ou latente. Todos, portanto, podem transformar determinado filme em “cult”. Há diversos tipos de cultos, para os mais diversos tipos de público, abertos a experiências diferentes.

Mas o que classifica um filme desse modo será sempre a condição de ele estar referido a uma espécie de código, um segredo, que o mantém distante e fora do alcance do espectador comum (leia-se, aquele que vê um filme apenas como entretenimento). Não devemos confundir isso com uma visão elitista dos apreciadores do cinema, ainda que algumas pessoas assim o desejem, como se o cinema, na busca de sua condição de arte, devesse obrigatoriamente se afastar da maioria dos espectadores. Todos têm condições de apreciar um bom filme, desde que tenhamos as condições objetivas de saber apreciá-lo e aí são necessários os fatores que mencionei. Talvez aí resida, equivocadamente, essa diferenciação que interessa tão-somente à indústria cinematográfica: a de atribuir a filmes o simples objetivo de entretenimento, minimizando-os (ou eliminando-os) de sua função de contribuinte transgressor do pensamento social.

Sintetizando, nesta digressão mais conceitual, podemos dizer que filmes “cult” são “filmes de nossa preferência”, nos quais projetamos fantasias, existências desejadas, mundos paralelos, que traduzem de forma figurada a nossa vivência da realidade. Há diretores que hoje se inserem nesse paradigma mais por razões históricas do que por mérito artístico, como é o caso de Roger Corman e Ed Wood, por exemplo. A Corman se atribui a condição de impulsionador de subgêneros do cinema americano, misturando sexo, sangue e violência num ritmo frenético em filmes de baixos orçamentos. Além disso, é considerado o precursor dos “blockbusters”, na medida em que criou as condições de cativar o maior número possível de entusiastas em filmes que continham a dose exata do espetáculo. Foi graças a ele que nomes como os de Francis Ford Coppola, Jack Nicholson, Jonathan Demme, Robert De Niro, Martin Scorsese, James Cameron, Joe Dante, entre outros, surgiram e firmaram-se como especiais no mundo do cinema.

Já Ed Wood, com recursos escassos, muita imaginação e uma equipe fiel, revisitou e explorou os medos de uma América que vivia (ou vive?) em permanente clima de perturbação. Criou os clássicos Glen ou Glenda (1953) e Plano 9 do Espaço Sideral (1959) e ganhou o título de “pior diretor de todos os tempos” por construir filmes sem obedecer as “regras da boa produção”, mostrando todo o universo de descontinuação e ilusão que existe no cinema para imprimir realismo a um filme. Isso que hoje se chama “filme trash”. Mas sem Ed Wood não existiria nem John Waters e nem Paul Morrissey. Tampouco o “filme trash” ou “filme B”.

Como não estabelecer um certo culto ou creditar importância a essas pessoas e seus filmes? Independente do valor artístico de suas obras, temos que reconhecer, às vezes, que foram suas vontades de criar algo novo e peculiar, intencionalmente ou não, que provocaram os caminhos que o cinema percorreu. Provavelmente um filme “cult” não nasceu de grandes paixões, de longos debates e críticas arrebatadas, sequer de uma intenção individual de um cineasta, do tipo “vou fazer um filme ‘cult’”. Ele se torna “cult”, ele se transforma “cult”, no processo de conquista de corações e mentes.

Por fim, quero citar aqui alguns filmes que reverencio como “cult” por razões diferenciadas, mas o que os une são suas qualidades estéticas e/ou inovadoras de realização. Cito Apocalypse Now (1979), de Coppola, como um dos mais brilhantes espetáculos imagéticos dos horrores de uma guerra, sem a preocupação “realista” que podemos ver nas cenas iniciais de O Resgate do Soldado Ryan (1998), de Spielberg. Aponto 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, como uma obra baseada num conto que ultrapassa o valor literário e da ficção científica, repensando os caminhos futuros do Homem. O grupo de humor irreverente Monty Python e seu Em Busca do Cálice Sagrado (1975) revolucionou o modo de fazer humor não só no cinema como na TV mundiais. Citando um brasileiro, não poderia deixar de fora o tão próximo e ainda atual Iracema – Uma Transa Amazônica (1975), de Jorge Bodanzky, por registrar imagens semidocumentais de uma Amazônia ainda desconhecida hoje da ação predadora do capital.

A lista certamente continuaria, mas quero aqui expressar que filmes novos também podem ser incluídos entre filmes “cult” ou com possibilidades de virem a ser (e não só os “clássicos”, outra categoria que parece ser mais identificada por sentimentos ligados à nostalgia). Aponto, como exemplos, Dogville (2003), de Lars von Trier, filme que quebra com os paradigmas do cinema convencional, impõe uma estrutura do teatro e todos nós nos deixamos levar pela visualização do cinema; Gaspar Noé e seu Irreversível (2002), que nos proporciona uma visão inovadora ao narrar a trama de trás para frente, sem deixar de imprimir um grau de hiper-realismo nas cenas de violência e sexo; Antiviral (2012), de Brandon Cronenberg, que mexe com a irresponsabilidade dos fãs de celebridades, tão presente no mundo de hoje, ultrapassando a ficção científica; The Lobster (2015), do grego Yorgos Lanthimos, uma visão nada futurista e ácida dos relacionamentos humanos; e o aqui já comentado Victoria (2015), de Sebastian Schipper, mais precisamente por sua forma radical de construção – um grande plano-sequência de mais de duas horas.

De toda esta conversa sobre filmes “cult”, o que se deve observar é que eles são construções de aficionados do cinema, a partir de diversas ponderações, mas que coletivamente refletem apenas uma intenção: a de considerar o cinema efetivamente uma arte valorativa de nosso tempo. Não é por acaso que sempre foi guindada à Sétima Arte…