Ao resenhar um filme lançado décadas atrás, podemos entrar em duas situações: observá-lo dentro de seu contexto histórico e social, no qual determinados acontecimentos fazem muito mais sentido se avaliados a partir de convenções daquela época, assim como a própria estrutura do filme; ou ver a obra com os olhos de hoje, construindo um pensamento crítico sobre como tema e linguagem eventualmente entram em conflito com o que hoje é tido como aceitável. Nesse sentido, a comédia “Quando mais quente melhor” surge, então, como uma provocação em ambas as direções.

Por um lado, há quem debata acerca do discurso de heteronormatividade envolvendo a história de dois músicos que se disfarçam de mulher para fugir das ameaças de bandidos; por outro lado, que discussão acerca disso chegava ao grande público que ia aos cinemas em 1959? E, ironicamente, que filme chegava ao grande público no qual questões de gênero eram postas de maneira por vezes tão leve que chegam a ser chocantes mesmo para os padrões atuais de “cinemão”?

A comédia é comumente usada como estratégia para abordar temas ou inserir elementos que poderiam gerar controvérsia. O diretor Billy Wilder soube usar isso a seu favor quando seu timing e entendimento da estrutura fílmica no contexto do gênero fizeram com que “Quando mais quente melhor” se posicionasse primeiramente como um filme que quer fazer rir, e não como um discurso claramente elaborado, apesar de seus protagonistas passarem a trama toda na condição de travestis. Podemos nos surpreender com a naturalidade com que o contrabaixista Jerry (Jack Lemmon) abraça sua persona feminina, Daphne, ao passo que a Josephine do saxofonista Joe (interpretado por Tony Curtis) tem trejeitos masculinos que, se um pouco mais exagerados, já seriam caricatos. O fato de a cantora Sugar Cane (Marilyn Monroe) só perceber que Josephine era Joe ao final do filme só pode ser explicado pela que ela repete várias vezes ao longo do filme: “Eu não sou muito esperta”!

Podemos também observar como, apesar da estrutura absurdamente clara e simples em termos de construção, a narrativa de “Quanto mais quente melhor” é sempre fluida. Temos segmentos bem recortados: em Nova York, Joe e Jerry sofrem com a falta de dinheiro e a perseguição por terem testemunhado um assassinato; a viagem de trem para a Flórida, no qual os músicos, já travestidos, conhecem Sugar; a chegada ao hotel, no qual trabalham e se metem em mais confusões; o disfarce de Joe como um milionário para conquistar Sugar e a paralela “sedução” do velho milionário Osgood Fielding III (Joe E. Brown, hilário) por parte de Daphne; e a resolução de tudo isso. Esses recortes, nas mãos de um diretor menos habilidoso, poderia resultar um filme que ficaria facilmente datado, mas Wilder lhe imprime um ritmo gostoso de ver até hoje. Há, sim, elementos envelhecidos, como a piscadela de olho quando a “ficante” de Jerry lhe recomenda o trabalho na banda formada só por garotas sem lhe contar esse “detalhe”, mas nada que prejudique o filme aos olhos do público atual.

A atuação de Lemmon e Monroe são o ponto alto, enquanto Curtis parece se beneficiar mais do bom roteiro. Este tem a chance de, com tão poucos elementos e muita sutileza, mostrar como Joe pode ser um pilantra completo, ainda que só o vejamos enganar Sugar (e ainda se apaixonar por ela) ao se fazer passar por milionário. Lemmon, por outro lado, realizou um brilhante trabalho em termos de expressão corporal, pois ele imprime alguns maneirismos mais exagerados à sua Daphne, mas, no geral, sua persona feminina consegue ser convincente.

As reações do personagem são também muito divertidas. Isso surge principalmente porque ele não se envolve pelo machismo que se esperaria de um indivíduo vivendo nos anos 1920, época em que se passa a trama. Embora sua heterossexualidade aflore quando se encontra um trem repleto de mulheres, as quais ele admira enquanto se recolhem nas cabines para dormir com trajes sumários, Jerry/Daphne também fica empolgado quando é pedido em casamento e ganha joias do milionário Osgood. Essa ambivalência o torna intrigante, e mais intrigante ainda é a escolha de nos fazer rir do personagem não apenas por estar vestido como mulher, mas pelas situações em que ele se mete. Quando lembramos que a grande piada de “Crô” era chamar um homem gay de gay, percebemos a diferença entre uma boa comédia, que dá trabalho de elaborar e demanda boas sacadas, e um filme que apenas se diz comédia.

Marilyn Monroe, cuja imagem hoje é atrelada a uma sensualidade quase etérea, mostra em “Quanto mais quente melhor” porque merece continuar sendo lembrada. Sua personagem, a loura burra que hoje é apresentada nos programas de comédia sem nenhum trabalho em cima do personagem, possui camadas, sensibilidade e tiradas hilárias no roteiro. O que dizer do diálogo inicial entre Sugar Kane e o “milionário Shell Junior” quando discutem que, no contexto econômico da época, seria indecente ter um iate para mais de 12 pessoas, e outros absurdos como a história de como Junior perdeu sua paixão adolescente?

A “burrice” de Sugar parte, na verdade, uma construção nada simplória de diálogos como esses. Aliado a isso está o timing da atriz para a comédia e, claro, sua beleza. Sobre esta, é impressionante observar como a sensualidade provocadora, porém sutil, surte um efeito maior que muitas atuais cenas de nudez no cinema. Os vestidos de Marilyn parecem costurados ao corpo e prontos a revelarem mais, sem nunca o fazerem. Sua linguagem corporal, expressões e curvas ainda botam todas as Halle Barrys, Megan Foxes e Angelinas Jolie no chinelo em termos de beleza, e isso de fato vai além da imagem cristalizada que se tem da hoje mitológica Marilyn Monroe. Vendo-a como a exuberante Sugar, difícil acreditar que a atriz estava grávida na época da filmagem, sofria de depressão e dificultou a vida de todos no set.

Lançando o olhar de quem nasceu muito tempo depois de “Quando mais quente melhor”, são compreensíveis as discussões de gênero mais aprofundadas que ganham asas a partir do filme, ainda que seu principal propósito seja, essencialmente, fazer rir. Na primeira cena em que Joe e Jerry aparecem travestidos, este último reclama de seu incômodo não só com a vestimenta a ele estranha, mas com o fato de que todos parecem encará-lo. Quando Jerry, ou melhor, Daphne entra no elevador do hotel com Osgood, e isso acontece quando eles tinham acabado de se conhecer, a “moça” é assediada pelo milionário; no quarto do hotel, um funcionário também assedia Joe/Josephine, e diz que tem a chave mestre dos quartos, apesar da “moça” recusar as investidas.

São nesses momentos que percebemos que a condição da mulher na sociedade não mudou tanto assim dos anos 1920 em que se passa a comédia e a amarga realidade. Nesta, essas situações têm o potencial de descambar para a violência e ainda estão, em maior ou menor grau, presentes no cotidiano feminino. Para completar, Joe e Jerry reclamam de sua condição de vítimas dos homens que os assediam, mas ao invés de refletirem sobre suas próprias atitudes, eles clamam que querem ser dominantes novamente. Repito, o objetivo do filme nunca foi gerar discussão sobre esse tema, mas é difícil deixar passar em branco o que se pode interpretar a partir dele.

Explanado esse pequeno grande parêntese, a avaliação geral é que “Quanto mais quente melhor” permanece um filme ágil, de estrutura simples, mas não simplória, e, principalmente, capaz de fazer rir. Quando listamos comédias que conseguem ser realmente marcantes passado o tempo de projeção, percebemos que esse é um feito e tanto para o gênero. Além disso, o filme evoca as melhores características do cinema clássico norte-americano, a partir do qual a linguagem cinematográfica como um todo começou a delinear sua identidade, o que justifica sua presença constante em seleções de melhores fitas. Para ver sem medo de dar risada.

Nota: 8,5