Amor ao cinema: mesmo quem não conheceu Cosme Alves Netto parece gostar de usar o termo para caracterizá-lo. O “agitador” e cinéfilo amazonense, tema do novo documentário de Aurélio Michiles (que, não por acaso, se chama “Tudo por Amor ao Cinema”), marcou o cenário audiovisual não só do Amazonas, mas também do país e do mundo.

A afirmação poderia soar como mera hipérbole, mas o fato é que, principalmente por conta de seu trabalho à frente da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Cosme se destacou como uma figura proeminente no meio. Seu projeto de resgate, restauração e exibição de filmes seria uma das suas principais heranças cinematográficas mesmo depois de seu falecimento, em fevereiro de 1996.

De seu envolvimento com o cineclubismo ao seu amor por Cantando na Chuva, há muito ainda a se falar sobre Cosme e, para fazer isso melhor, o Cine Set conversou com oito nomes ligados ao audiovisual amazonense, tanto da sua geração, de amigos próximos e conhecidos, quanto da “jovem guarda”, influenciada por seu trabalho, a fim de saber o que eles pensam: afinal, quem foi Cosme Alves Netto? E qual o maior legado que ele deixou para o cinema de hoje?

Aurélio Michiles, diretor de "Tudo por Amor ao Cinema", documentário sobre Cosme Alves Netto

Aurélio Michiles, diretor de “Tudo por Amor ao Cinema” e “O Cineasta da Selva”

O Cosme é a própria memória. Muitas vezes, quando ele percebia que a memória encontrava-se ameaçada, não media esforços, mesmo correndo risco de vida para preservá-la. Ele era de uma geração que, na escuridão da sala de cinema, procurava a luz que a levasse a transcender a realidade e a irrealidade transformadora do século XX. Aquelas salas com mil lugares exerciam sobre essas gerações o mesmo sentimento de um templo religioso: temer e amar com fé as imagens, os astros e a estrelas. Esses eram os seus deuses. E mais, numa época que não havia nenhum incentivo à guarda e preservação da produção cinematográfica, e que, por conta disso, muitos filmes se perderam. Como reação a essa ameaça é que foram criadas as cinematecas e o Cosme, como diretor por mais de três décadas da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, dedicou-se a proteger toda e qualquer produção cinematográfica.

Ele deixou um legado que se encontrava clandestino e que agora, com o filme “Tudo por Amor ao Cinema”, as pessoas passam a conhecer. E é exatamente este o objetivo do longa, tornando público este personagem de gigantesca importância para a cultura, mas também dando visibilidade ao cinema brasileiro.

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Márcio Souza, escritor amazonense

Márcio Souza, escritor, autor do livro sobre cinema “A Substância das Sombras”

Em 1963, quando o Cosme voltou do Rio de Janeiro depois de cursar Filosofia, ele já veio fundando o Grupo de Estudos Cinematográficos do Amazonas, o GEC. Ele usava a estrutura do negócio do pai dele para trazer de fora os filmes em películas de 16 e 35mm, muito caros para época, e foi por causa dele que tivemos acesso a tantos clássicos em Manaus. Já mais tarde, comandando a Cinemateca no Rio, ele montou um lugar de referência, aos moldes da Cinemateca Francesa. O Cosme, de fato, se dedicou ao trabalho ainda incipiente de recuperação de filmes. Essa consciência teve influência mundial, repercutindo fortemente entre cinéfilos e cinematecas, que começaram a pipocar pelo mundo no final dos anos 50, 60. A dedicação do Cosme a esse projeto culminou com a busca por esses filmes, seja do cinema latino-americano ou do europeu. Não à toa hoje a maioria das cinematecas têm caráter profissional e são abertas à projeção, em vez de guardar as cópias pra eternidade, como a cinemateca do MAM.

Uma pena que Cosme tenha morrido sem ver o resultado do interesse que ele despertou – ele faleceu dormindo, abruptamente. Cosme era louco por “Cantando na Chuva”, e, coincidentemente, morreu no mesmo dia e na mesma hora que o Gene Kelly. Todo fim de ano ele assistia o filme lá em casa, e até hoje eu não deixo de passar o musical em homenagem a ele.

Roberto Kahane, realizador, diretor de “Silvino Santos: o Fim de um Pioneiro”

Roberto Kahane, realizador, diretor de “Silvino Santos: o Fim de um Pioneiro”

Conheci o Cosme quando fui premiado no I Festival Norte de Cinema Brasileiro, aqui em Manaus, em 1969. Porém, só estreitamos a nossa relação no final de 69, quando eu me mudei para o Rio de Janeiro e ele já era responsável pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna, dirigida com muito primor por ele. O apoio do Cosme foi fundamental para a minha carreira profissional: na cinemateca, havia toda uma estrutura profissional para a época, com equipamentos como a moviola e uma bela sala de projeção, e que me ajudaram na realização dos meus filmes. Eu cheguei até a dividir equipamentos com nomes do Cinema Novo, como o [Arnaldo] Jabor.

Além disso, apesar do Cosme ser de uma geração um pouco acima da minha, tive uma convivência especial com ele. Afinal de contas, éramos dois conterrâneos no Rio, e eu sempre estimei muito a pessoa dele, antes mesmo de nos conhecermos. Na década de 60, em Manaus, havia um movimento cineclubista muito forte, e o Cosme era responsável por essa fagulha: ele trazia para a cidade cópias de filmes do neorrealismo italiano, do expressionismo alemão, clássicos americanos e soviéticos que só conhecemos por meio dos cineclubes.

Depois, já no Rio, quando nos aproximamos, percebi que ele era definitivamente alguém que respirava cinema. Um comunista ferrenho, que chegou a ser preso por isso, e que era convidado para festivais de cinema no Leste Europeu. Uma figura que adorava filmes americanos – “Cantando na Chuva” era um de seus preferidos. Ele também era radical: às vezes, simplesmente dizia “não vi e não gostei” a respeito de um filme. Seu negócio era ver a ficha técnica, pois ele conhecia de tudo e todos. Cosme era realmente um parceiro excepcional e uma figura única, e é uma pena que tenha falecido precocemente, pois ainda tinha muito a nos proporcionar. Falar dele me traz à memória muitas histórias, e eu perderia a tarde toda só conversando sobre isso.

Selda Vale da Costa, pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Antropologia Visual da Ufam, autora de "No Rastro de Silvino Santos"

Selda Vale da Costa, pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Antropologia Visual da Ufam, autora de “No Rastro de Silvino Santos”

Conheci Cosme em 1969, quando voltei da minha graduação na USP para Manaus, e desde então foram muitos os encontros, seja no Brasil, nos festivais de cinema, nas reuniões do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, seja no exterior, México, Portugal, quando o Cosme voltava dos festivais de Berlim ou de Veneza. Depois, nos anos 80, foi com o apoio do Cosme que iniciei minha pesquisa sobre o cineasta Silvino Santos e a descoberta de seus filmes em Portugal, Londres e Paris. Sem o Cosme, Silvino Santos talvez não tivesse sido reconhecido e seus filmes não teriam a importância que hoje possuem, como documento e arte. O maior legado do Cosme, para nós da Amazônia, foi ter descoberto e dado a conhecer Silvino Santos. Mas, mais do que tudo, Cosme foi importante para o cinema brasileiro e mundial ao preservar e recuperar filmes considerados perdidos, censurados e proibidos. Mas, para Cosme, não bastava preservar, era importante que o filme fosse exibido. “Filme não visto é filme que não existe. Vamos exibir tudo o que temos recuperado”, essa foi a máxima de sua filosofia enquanto diretor da Cinemateca do MAM/RJ. E deixou uma herança valiosa para todos os que amam o cinema.

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Antônio José Vale da Costa (Tom Zé), jornalista, professor e coordenador do Cine Vídeo Tarumã

Tom Zé, jornalista, professor e coordenador do Cine Vídeo Tarumã

Apesar de ter conhecido Cosme apenas de vista, compreendo que sua importância para o cinema – e, veja bem, falo do cinema mundial – vai além de sua participação na condução da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, que foi um espaço referencial de exibição de filmes de todos os países no Rio de Janeiro, num momento duro da política brasileira. Digo mesmo que seu legado foi o de criar caminhos por onde os cinemas brasileiro e latino-americano galgassem o merecido patamar dentro da cinematografia mundial. A visibilidade de um cinema mais político, onde os problemas sociais latinos pudessem ser percebidos em suas unidades e diferenças, dentro e fora do circuito internacional, foi possível graças ao papel de “embaixador” que Cosme teve circulando pelo mundo. Podemos dizer mesmo que a repercussão do Cinema Novo brasileiro e a percepção de um Cinema do Terceiro Mundo, contestatórios do modelo de produção e circulação hegemônicos, só foi possível pela ação do Cosme. E isto sem falar no seu papel fundamental de incremento do cineclubismo no Brasil.

Sérgio Andrade, diretor de “A Floresta de Jonathas”

Sérgio Andrade, diretor de “A Floresta de Jonathas”

A cinemateca do MAM foi e é um ícone do cineclubismo e das ações mais consistentes de resistência e formação do Cinema Brasileiro. Cosme era um visionário e seu trabalho está ligado a cada filme que hoje realizamos, pois sua luta era legar uma profunda reflexão estética e conceitual a toda uma geração de realizadores.

Antonio Carlos Junior, ator, roteirista e diretor de “O Cuspe”

Antonio Carlos Junior, ator, roteirista e diretor de “O Cuspe”

Cosme Alves Netto é parte essencial do cinema brasileiro. No Amazonas, foi uma das figuras importantes para pensar o nosso cinema e fomentar a exibição de filmes. Uma pena que, assim como muitos outros, Cosme seja apenas uma figura ilustre e desconhecida de grande parte dos seus conterrâneos. Ele merecia mais pelo tanto que amou e se dedicou ao cinema.

Sávio Stoco, pesquisador e realizador

Sávio Stoco, pesquisador e realizador

Antes de tudo, ele foi importante em sensibilizar ou ajudar a motivar o estudo de cineastas como o Silvino Santos, nas trajetórias do Márcio Souza, Selda Vale e do próprio Aurélio Michiles. Logo, nossa geração hoje também de alguma forma reverbera o que seria o legado que ele deixou sem que tivéssemos tido contato com ele diretamente.

Como disse a Michiles por e-mail, depois de ver a pré-estreia do filme, para a minha geração que não teve contato algum com o Cosme – só ouviu falar (e muito pouco) –, ver aquela movimentação toda, aquele trabalho lento e grande, difícil até de nomear – curador? agitador? programador? administrador? cineclubista? conservador? –, dá um sentido diferente para os trabalhos que estamos realizando hoje. Então, eu diria que o Cosme, com sua trajetória, deixou um ensinamento de olharmos para nossas produções, e de nos conhecermos cada vez mais.


A trajetória de Cosme Alves Netto e sua dedicação ao universo cinematográfico são tema do documentário “Tudo por Amor ao Cinema”, que chega às salas brasileiras – inclusive as de Manaus – nesta quinta-feira, 30. Confira a programação aqui no Cine Set.