Reza a lenda que o cinema é uma arte dinâmica, de movimento.

Para os ranhetas do período mudo, por exemplo, essa arte teria morrido com a chegada do som, que obrigou os seus criadores a se converter (escravizar talvez seja a palavra) a um novo jeito de filmar, baseado em diálogos, em vez de ações. Com isso, o cinema teria ficado chato, monótono – onde foram parar as grandes perseguições a cavalo, os duelos de espadachins, as viagens à Lua?

Imagine, então, o que os entusiastas dessa tese não diriam de Richard Linklater, um artista famoso por, entre outras coisas, criar filmes inteiros à base de… diálogos?

Pois aqui vai a polêmica que justifica o Filmografia desse mês: e se eu disser que alguns dos filmes mais interessantes e originais dos últimos trinta anos são justamente as obras mais paradas do cineasta – longas e fascinantes odes à interação entre pessoas, como Slacker (1991), Waking Life (2000) e a trilogia composta por Antes do Amanhecer (1995), Antes do Pôr-do-Sol (2004) e Antes da Meia-Noite (2013)?

Para se fazer justiça a Linklater, porém, não podemos ficar só nesse rótulo, que é bastante antipático em primeiro lugar. O diretor texano, um dos arautos do cinema independente americano dos anos 1990, é um artista completo, ponto, capaz de atravessar sem peias a comédia (Escola de Rock [2003], Sujou… Chegaram os Bears [2005]), o filme político (Nação Fast Food – Uma Rede de Corrupção [2006]), a ficção científica (O Homem Duplo [2006]) e obras tão inclassificáveis quanto Jovens, Loucos e Rebeldes (1993) e Boyhood: Da Infância à Juventude (2012). Tanto quanto os irmãos Joel e Ethan Coen e Quentin Tarantino – outros luminares do cinema indie americano e seus quase-contemporâneos – Linklater é um nome que merece ser estudado e celebrado como uma das vozes criativas verdadeiramente relevantes a surgir em seu país desde os anos 1990.

Mas – numa pergunta ao estilo de Waking Life –, e como isso tudo começou?

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Para Linklater, foi com Touro Indomável, o filme de 1980 de Martin Scorsese. Ali, disse o diretor, estava – como se diz mesmo? – algo mais, um jeito diferente de conceber o cinema, que tinha a ver com o que Richard pensava em expressar, ele próprio, como artista. À época, Richard Stuart Linklater tinha 20 anos e era jogador universitário de beisebol em Houston, Texas – e essa época, da transição entre a juventude e a idade adulta, seria tão marcante em sua vida que serviria de inspiração para praticamente toda a sua carreira como realizador. No mesmo depoimento sobre Touro (uma entrevista do jornalista Richard K. Elder para o livro The Film That Saved My Life [Chicago Review Press, 2011] – ótima leitura, por sinal, e [não conte pra ninguém] facilmente baixável na internet), Linklater afirma que a experiência de assistir ao filme abriu todo um novo compartimento em sua cabeça: como todo mundo, Richard gostava de filmes, mas ele nunca havia pensado em cinema – a arte, a história, a ciência – até se deparar com o aterrador mergulho no abismo de Jake LaMotta.

Filho de uma professora universitária, Linklater não era estranho ao mundo artístico – à época de seu “estalo” para o cinema, ele já ensaiava alguns textos como escritor e dramaturgo – mas suas principais ocupações até então haviam sido a de atleta e um emprego temporário numa base de petróleo em alto-mar, no Golfo do México. Ao voltar para Houston dessa segunda experiência, Richard já estava irremediavelmente inoculado do vírus do cinema. Com suas economias, ele comprou uma câmera Super 8, um projetor, uma modesta ilha de edição e rumou para a capital cultural e institucional do estado: Austin.

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Amanhecer: dos primeiros anos em Austin até Newton Boys (1984-1998)

Os primeiros anos de Linklater em Austin foram de aprendizado. Entre sessões de filmes, leituras em bibliotecas e curtas experimentais, o cinéfilo recém-convertido RL logo viraria um dos líderes da cena artística independente da cidade. Em 1985, ao lado do fotógrafo Lee Daniel, ele fundou a Austin Film Society, uma organização de divulgação e fomento da cultura cinéfila no Texas que é uma das mais importantes do tipo nos Estados Unidos, atraindo em anos posteriores membros tão ilustres quanto Jonathan Demme, Steven Soderbergh e Quentin Tarantino. Usando o seu próprio dinheiro e filmando com equipamento caseiro, ele completaria o primeiro longa em 1991, o famoso Sla… não, pera.

O primeiro filme de Richard Linklater é um sólido desconhecido nos Estados Unidos, e tanto mais no Brasil: o experimental It’s Impossible to Learn to Plow by Reading Books (1988 – literalmente, “é impossível aprender a arar só lendo livros”). Uma das surpresas para a pesquisa deste artigo, o filme é certamente o projeto mais “duro” de Linklater: sua falta de trama propriamente dita, com uma série de eventos e personagens aleatórios, que não estabelecem progressão nenhuma, deve estomagar os espectadores acostumados a narrativas convencionais, com começo, meio e fim. E Linklater não desenvolveu, ainda, os diálogos hipnóticos que fazem valer a pena as trips de Slacker e Waking Life, e que são a marca registrada de sua filmografia. Escrito, produzido, filmado, atuado, editado e – ufa! – dirigido por Linklater, Plow, no entanto, já mostra como o artista nasceu pronto, com uma voz única desde o começo: com sua câmera acompanhando as andanças e encontros do protagonista (o próprio RL), o filme apresenta em microcosmo tudo o que o diretor depois trabalharia à perfeição: o interesse no universo jovem, na cultura marginal e/ou suburbana, na passagem do tempo, nas caminhadas à Thoreau e, principalmente, nas interações humanas – a miríade de ritmos e temas da fala, o prazer de uma boa conversa, a vontade de acompanhar pessoas inteligentes falando sobre todos os assuntos. Embora não seja, evidentemente, um clássico do diretor, trata-se de um filme interessante para os já aficcionados – deixei o link do YouTube (sem legendas) para quem estiver disposto a encarar. A obra nunca teve um lançamento em escala nacional, nem nos Estados Unidos, e só existe em formato comercial, hoje, como um feature da edição em DVD de Slacker.

Mas o elemento que mais faz falta em Plow – os diálogos – sobra no, esse sim, famoso Slacker (1991). Eis o filme que, realmente, pôs Richard Linklater no mapa. Rodado no mesmo esquema indie (para não dizer mambembe) de Plow, mas com maior orçamento, melhor equipamento e, o mais importante, mais experiência por parte do diretor, o filme é a primeira manifestação madura do estilo autoral de Linklater: embora seja igualmente sem trama, Slacker tem um fio condutor muito claro – a vontade de acompanhar os diálogos excêntricos de uma série de personagens marginais de Austin, dos (sempre eles) músicos e escritores até teóricos de conspirações, veteranos de guerra, paranoicos, pretensos assaltantes e assassinos e vários outros gloriosos vagabundos profissionais. Uma celebração da vida fervilhante às margens da cultura corporativa e dos ditames tradicionais da vida em sociedade, Slacker (uma palavra sem tradução literal em português, mas usada para descrever pessoas à toa, sem ambições), rodado com modestos $23 mil, faturaria mais de 1 milhão de dólares no circuito comercial e ganharia ares de testemunho geracional – a palavra slacker entraria para o vocabulário informal americano e ficaria para sempre colada à juventude “alternativa” dos anos 1990. Mas, diferentemente da gíria datada, o filme continua uma experiência deliciosa, e prova do quanto uma obra onde as pessoas “só falam” pode ser cheia de dinamismo, de intensidade, de variedade – de vida, enfim.

O filme também teve um papel decisivo no avanço do cinema independente dos Estados Unidos. Junto com os primeiros trabalhos de Steven Soderbergh e Quentin Tarantino (os irmãos Coen, a essa altura, já estavam bem estabelecidos), Slacker mostrou o vigor do movimento em ascensão nos estertores de Hollywood, e que seria o necessário contraponto aos Michael Bays e Jerry Bruckheimers dos anos seguintes.

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Ainda assim, ao menos para este escriba, Linklater começa pra valer com a sua primeira obra-prima: Jovens, Loucos e Rebeldes (1993). Outra produção independente, o filme é quase mágico em sua simplicidade: acompanhamos o último dia de aula numa típica escola americana, no ano de 1976. A provar que nenhum material é inferior nas mãos de uma artista com ideias, o filme é uma sucessão maravilhosa de pequenas histórias e personagens: do garoto que terminou o fundamental e agora conhece as festas dos “adultos”, com cerveja, maconha e garotas – mas também os bullies mais velhos, com um novo grau de perversidade nos castigos (Wiley Wiggins) – ao jogador de futebol que é constantemente cobrado por treinadores e colegas sobre “responsabilidade” e “lealdade” ao time, o que significa abandonar seus amigos mais festeiros (Jason London), Jovens é um instantâneo amoroso daquele momento, na esquina da vida adulta, em que tudo o que importa é a festa pra se ir, os amigos pra se encontrar, a música, a cerveja, o fliperama, as garotas (ou garotos).

Com um elenco de futuros astros, quase todos tendo aqui a sua primeira chance – Ben Affleck, Matthew McConaughey, Milla Jovovich, e até uma brevíssima e muda Renée Zellweger –, o filme não foi um sucesso para os padrões de Hollywood, mas logo ganhou status de cult, e cresceu incomensuravelmente nos aluguéis de videolocadoras (em tempo: um tipo de estabelecimento, muito querido nos anos 1980 e 90, onde os filmes, então em forma de videocassetes, enchiam longas prateleiras, e as pessoas podiam se encontrar e confabular umas com as outras e com os atendentes do balcão sobre filmes – Quentin Tarantino, por exemplo, trabalhava em uma, e formou sua cultura enciclopédica do cinema com aqueles adoráveis trambolhos). São muitas pepitas para se rememorar aqui – a estupenda trilha sonora, com clássicos do rock da época, e que é tão protagonista do filme quanto o elenco; personagens memoráveis, como o maconheiro Slater, de Rory Cochrane, dono das melhores falas do filme; e os diálogos, naquele estilo inimitável de Linklater, inteligentes, cativantes e soando tão naturais quanto os que eu e você temos por aí. Para uma apresentação ao universo do diretor, eu não teria um filme melhor pra indicar.

Ou talvez tenha: para os mais inclinados a uma história romântica, é difícil superar Antes do Amanhecer (1995). Outro projeto pequeno e pessoal do diretor, o filme desenvolve o seu olhar lírico sobre a juventude e a passagem do tempo: num vagão de trem europeu, dois jovens, um americano, Jesse (Ethan Hawke), e uma francesa, Céline (a extraordinária Julie Delpy), se conhecem por acaso e resolvem descer em Viena, Áustria, para 24 horas de caminhadas, conversas e, como sói acontecer, uma forte atração mútua. Mais um tributo agridoce do diretor à beleza e à preciosidade dessa fase da vida, Amanhecer confirmou o talento de Linklater como realizador, e, assim como Jovens, Loucos e Rebeldes, virou um verdadeiro objeto de veneração para os jovens dos anos 1990 – muitos dos quais foram à luta, compraram um Europass e partiram em viagens sem destino certo por trens da Europa, na esperança de conhecer os seus próprios Jesse ou Céline. Com esse filme, Linklater entrou no radar de Hollywood, que, assim como já havia feito com Tarantino e Soderbergh, começou a lhe oferecer projetos de grande orçamento.

Em 1996, Linklater teve um gosto do sucesso mainstream com seu trabalho de dublagem na versão longa-metragem do desenho-sensação dos anos 1990: Beavis e Butt-Head Conquistam a América (1996 – para quem não lembra, Richard era o motorista do ônibus que levava a dupla para Las Vegas). Ele também lançou outro projeto independente, o subestimado subUrbia, no mesmo ano. Com uma estrutura similar à de seus últimos filmes, a obra é uma espécie de Jovens, Loucos e Rebeldes em outra chave, mais amarga e sombria, como se os personagens daquele filme tivessem ficado pelo caminho, resignando-se a um estado de eterna adolescência fútil, negativa, onde os pequenos prazeres do mundo “adulto” – bebidas, rock, passar a noite na rua, implicar com os “mais velhos” – são repetidos sem recompensa ou objetivo. Quando um deles, Pony (Jayce Bartok) – antes o geek solitário da turma, agora líder de uma banda de sucesso – volta à cidade, onde vários amigos continuam duros e sem perspectivas, o ressentimento aflora e corrói de vez os velhos laços. Sem ser tão bom quanto os antecessores, SubUrbia traz muito do gume dessa fase de Richard Linklater, com ótimos diálogos (dessa vez, de autoria do dramaturgo Eric Bogosian) e desempenhos memoráveis do elenco (Giovanni Ribisi, de Encontros e Desencontros, está particularmente elétrico como o líder da turma, Jeff).

RL enfim encararia a indústria do cinema com Newton Boys: Os Irmãos Fora da Lei (1998). Com dois astros revelados por Linklater à frente do elenco (Matthew McConaughey e Ethan Hawke) e uma trama sobre ladrões de bancos na época da Grande Depressão, o filme parecia um daqueles projetos à prova de falhas – e, no entanto, o resultado, para usar a gíria de 2018, é apenas ok. Um híbrido estranho entre o estilo mais suave, conversacional, de Linklater, e as exigências de um filme de ação, com perseguições e explosões, Newton Boys tenta ser uma homenagem a Bonnie & Clyde: Uma Rajada de Balas (1967), de Arthur Penn, o clássico inaugural da Nova Hollywood, mas acaba saindo uma imitação menos vibrante. Ainda assim, fãs do diretor deveriam dar uma conferida, nem que seja pela curiosidade de ver o bizarro encontro de Os Intocáveis com Jovens, Loucos e Rebeldes – típico para Linklater, há mais conversas entre os ladrões durante os crimes do que crimes em si. Comercialmente, o resultado não foi melhor: com uma bilheteria que não pagava nem metade do orçamento da produção, o diretor foi obrigado a voltar para os filmes independentes.

Felizmente, para nós, filmes independentes eram – e continuam sendo – a praia favorita de RL.

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Vida desperta: sucesso em Hollywood e no circuito independente (2001-2011)

É inegável que a primeira década de Richard Linklater como realizador é seu período mais vital e inovador, e provavelmente o seu testamento artístico – obras como Slacker, Jovens, Loucos e Rebeldes e Antes do Amanhecer são caminhos verdadeiramente novos para o cinema americano, com sua mistura única de leveza e profundidade, lirismo e humor, poesia e realismo. Mas a fase que vai de Waking Life (2001) até Bernie (2011) talvez seja o seu período mais intrigante, com Linklater testando-se em diferentes gêneros, diferentes esquemas de produção, e até técnicas de filmagem novas. É o caso de Waking Life.

Espécie de continuação de Slacker, Waking Life usa o mesmo ponto de partida – a câmera de Linklater flutua, livre, entre várias conversas, às vezes malucas, às vezes assustadoramente densas, mas sempre fascinantes de se ver. Dessa vez, porém, em vez de traçar um quadro de uma comunidade de pessoas, o diretor investiga um tema mais específico, se ainda mais difuso: o mundo dos sonhos. Wiley Wiggins, de Jovens, é o protagonista sem nome, presenciando situações surreais – o macaco que projeta um documentário, os homens que viram nuvens, o anarquista que se senta no chão e ateia fogo a si mesmo – e conversas que versam sobre praticamente tudo, das teorias sobre o cinema de André Bazin a técnicas para se manter consciente durante os sonhos, passando por existencialismo, religião, literatura, a natureza da realidade, livre arbítrio e políticas radicais. O que deveria soar, no papel, como uma masturbação intelectual infindável e chatérrima talvez seja o filme mais rico de Linklater, e a prova definitiva de seu dom para construir diálogos mesmerizantes e colocá-los na tela. Aqui, a tática do diretor foi transformar todo o material filmado com atores de carne e osso numa animação singular, usando a técnica conhecida como rotoscopia, que consiste em sobrepor o trabalho dos artistas ao material live action, quadro a quadro. Linklater teve a sorte de encontrar o gênio texano da animação digital, Bob Sabiston, que desenvolveu um software capaz de aplicar todo o processo rotoscópico a um custo bem baixo, tornando o filme possível. Denso, bizarro, belo e absolutamente único, Waking Life é certamente um dos três trabalhos mais importantes e originais do diretor (deixo a vocês para descobrir pelo restante deste texto quais são os outros dois).

Um mês depois de Life, que teve uma gestação longa e estressante, Linklater lançaria Amargo Reencontro (2001), mais um experimento em técnicas e estrutura. Rodado inteiramente com câmera digital, com a ação do filme transcorrendo em tempo real – seus 86 minutos de projeção são 86 minutos da vida dos personagens – e num set extremamente limitado – um quarto de motel, e mais nada –, a obra é uma filmagem da peça de Stephen Elber, uma meditação sobre os erros passados e presentes de dois amigos há muito afastados, Vince (Ethan Hawke), um traficante de drogas, e Jon (Robert Sean Leonard), um cineasta, com um triângulo amoroso mal-resolvido envolvendo ainda Amy (Uma Thurman), a ex-namorada de Vince. Assim como subUrbia, Reencontro não nega sua origem teatral, mas o crescendo de tensão e o trabalho intenso do elenco fazem deste um dos filmes mais ferozes de RL.

A relação Linklater/Hollywood finalmente entraria nos eixos com Escola de Rock (2003), uma colaboração do diretor com o comediante Jack Black, e uma comédia juvenil com uma espirituosa aura de Sessão da tarde. Black encontraria a sua persona definitiva no protagonista Dewey, um roqueiro irresponsável que finge ser professor para convencer os alunos de uma escola de elite a tocar numa batalha de bandas. Com uma bilheteria astronômica para os padrões do diretor ($135 milhões), o filme deu o respiro financeiro necessário a Linklater, que passaria a se alternar entre produções independentes e one-offs em Hollywood. No ano seguinte, RL retomaria e daria a forma talvez definitiva à história de amor entre Jesse e Céline, com Antes do Pôr-do-Sol (2004). Não vou falar sobre ele aqui – já há um artigo, deste mesmo escriba, para declarar seu amor à obra e pregá-lo ao mundo –, mas que espécie de magia é essa que faz com que Linklater reúna elementos aparentemente tão banais e, através deles, diga tanto sobre nós todos?

2005, por sua vez, trouxe mais uma comédia em esquema industrial: Sujou… Chegaram os Bears. Um remake do clássico esportivo de 1976, Garotos em Ponto de Bala, a obra traz Billy Bob Thornton como Morris Buttermaker, um ex-atleta fracassado e alcoólatra que decide ajudar um time de beisebol infantil ridicularizado entre os pares. Sempre é difícil para um filme aguentar a comparação com o clássico que lhe deu origem, e Sujou…, obviamente, sai em desvantagem, mas é uma produção tão afetuosa e humana – o tema do beisebol, evidentemente, é muito caro ao diretor –, que o filme é um prazer por mérito próprio. A bilheteria apenas razoável não desanimou Linklater, que voltaria prolífico em 2006 com dois filmes: Nação Fast-Food – Uma Rede de Corrupção e O Homem Duplo. Enquanto o primeiro, um filme-denúncia sobre a cultura da má alimentação e as péssimas condições sanitárias dos fornecedores de carne dos Estados Unidos, é tão preocupado com a mensagem que deixa o elenco, com nomes como Greg Kinnear, Patricia Arquette e Bruce Willis, à deriva, O Homem Duplo é mais um petardo em forma de animação rotoscópica. Tal qual Waking Life, Homem passou longos meses em pós-produção, novamente com Bob Sabiston e companhia, e, embora seja um filme bem mais convencional do que WL (mas qual filme não seria?), sua história de confusão entre realidade e alucinação, experimentadas por Fred/Bob Arctor (Keanu Reeves – sim!), um agente infiltrado atuando no combate a uma droga alucinógena chamada Substância D, em um futuro distópico que é em tudo similar ao nosso presente, é cheio das questões que permeiam aquele primeiro filme, bem como da obra do autor do romance que lhe deu origem, Philip K. Dick.

Entre 2008 e 2011, o texano se voltaria para duas figuras reais, em filmes subestimados nos lançamentos originais, mas que podem ser colocados entre os trabalhos mais interessantes de sua carreira: Eu e Orson Welles (2008) e Bernie – Quase um Anjo (2011). Com trabalhos impecáveis de seus atores centrais – Christian McKay, como Welles, o visionário do cinema e do teatro que faria Cidadão Kane [1941]; e Jack Black, na atuação mais inspirada e complexa de sua carreira, como Bernhardt “Bernie” Tiede, um agente funerário que comete um assassinato, mas é tão querido que toda a cidade se voluntaria para testemunhar por sua inocência – as obras trazem uma mistura intrigante de drama e sarcasmo (e muito humor-humor também), além da habilidade característica de Linklater para os diálogos. Sobretudo o segundo, com um maravilhoso componente de cor local – a saga de Bernie se desenrolou na cidadezinha de Carthage, refúgio de vários magnatas do petróleo texanos e suas viúvas solitárias –, e trazendo depoimentos de pessoas que conheceram o protagonista e a vítima, a viúva milionária Marjorie Nugent, é um dos filmes mais intrigantes de Linklater, com trabalhos igualmente inspirados de Shirley McLaine, como Marjorie, e McConaughey, como Danny Buck Davidson, o promotor que precisou pedir a transferência do julgamento para outro município, a fim de conseguir um processo imparcial. Eu e Orson Welles, se não chega às mesma alturas, também é delicioso, com seu retrato elétrico, vibrante do gênio de Orson Welles, como visto pelos olhos de um jovem ator (Zac Effron) convidado a integrar sua montagem teatral inovadora de Júlio César, de William Shakespeare. O caminho fora longo – das incertezas no período pós-Newton Boys à total segurança no manejo dos materiais delicados de Bernie, que evita recair na condenação de seu protagonista, ou na tentativa de tornar sua história insólita mais tragicômica do que ela já é. Um ciclo estava fechado – e um diretor maduro e experiente estava perto do auge.

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Da infância à juventude: Boyhood e a fase recente do diretor (2013-2018)

Agora um artista pleno, dono de seu estilo, Linklater voltaria a revisitar as pedras fundamentais de sua obra, como ele já havia feito antes, mas sempre acrescentando uma sabedoria nova, uma pungência e um lirismo em tons diferentes dos que ele já tinha tentado.

É o caso de Antes da Meia-Noite (2013). O terceiro passeio pelas vidas de Jesse e Céline, agora parte assumida de um projeto entre Linklater, Hawke e Delpy de produzir novos capítulos a cada década, para investigar os efeitos do tempo sobre as pessoas e seus relacionamentos, mantém o mesmo conjunto estupendo de grandes diálogos, ensaiados até parecerem brotar espontaneamente do ar, e o ritmo suave, delicado, de planos longos que parecem acompanhar o tempo da vida. E, para o deleite dos fãs das obras anteriores, respondendo às perguntas sobre o destino dos protagonistas, nesses dez anos em que ficamos sem nos esbarrar. Agora um nome amplamente admirado na indústria, Linklater experimentaria a segunda indicação ao Oscar, por Roteiro Adaptado, ao lado de Hawke/Delpy (a primeira fora com Antes do Pôr-do Sol).

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Touro Indomável, citado lá no começo deste texto como uma espécie de big bang cinematográfico para Linklater –  o filme que lhe deu a consciência do potencial do cinema como arte – é uma espécie de “último filme” para Martin Scorsese, a soma de sua carreira. Convicto de que ele estava acabado, depois do fracasso de New York, New York (1977) e da derrocada geral do movimento do qual ele fora um dos pontas de lança – a Nova Hollywood –, o diretor resolveu fazer um filme sem medo, sem expectativas de sucesso ou fracasso, pondo na tela apenas a paixão por seu tema, e o que ele havia aprendido em seus então magros dez anos de indústria. Depois de triunfar, fracassar, experimentar, refinar e amadurecer como artista, Linklater faria o mesmo com Boyhood – Da Infância à Juventude (2014).

Certamente o projeto mais pessoal e emblemático do diretor, Boyhood é a palavra definitiva de Richard Linklater sobre todos os temas importantes de sua carreira, além de um triunfo  também no sentido técnico: rodado aos poucos durante doze longos anos, o filme acompanha momentos significativos da vida de Mason (Ellar Coltrane), uma criança nascida em uma família de classe média do Texas. Assim como em Antes do Amanhecer/Pôr-do-Sol e em Jovens, Loucos e Rebeldes, Linklater extrai joias raras do comum, do ordinário, do banal. Eis assim como um filme sem atos de grandeza, sem heróis ou vilões, e sem maiores eventos do que uma viagem em família, saídas com os amigos, a chegada a um novo colégio ou a ida a um acampamento se torna uma ode à beleza da vida, à poesia e ao impacto particulares que certos momentos de nossas existências exercem sobre quem somos, independente de serem momentos de “virada” ou apenas dias comuns. A aclamação generalizada levaria Linklater pela primeira vez “pra valer” ao Oscar, com Boyhood sendo indicado a Melhor Filme, Roteiro Original, Ator Coadjuvante (Ethan Hawke) e Edição, além de render um Oscar de Melhor Atriz Coajuvante para Patricia Arquette, que vive a mãe de Mason, Olivia. Outra obra essencial do diretor, e possivelmente – o páreo é duro, e eu não ouso afirmar com certeza – seu melhor filme.

Chegamos então às, até agora, últimas obras lançadas pelo diretor. Jovens, Loucos e Mais Rebeldes (2016) não é, como o nome faz sugerir, uma continuação do clássico de 1993, mas sim uma revisita afetuosa aos mesmos temas, e a uma época similar das reminiscências do diretor. Em 1980, um grupo de atletas de beisebol chega à universidade, e, nos dias que faltam para as aulas começarem, se dedicam a conversar, beber, ir a festas, procurar garotas e, de todas as formas possíveis, competir por primazia na matilha. Rodada novamente com um elenco de desconhecidos cheios de potencial, a obra consegue ser tão leve, engraçada e cheia de poesia quanto aquela primeira, um feito especialmente admirável para quem toma o Jovens de 1993 por um dos castelos de seu paraíso cinéfilo. Mais Rebeldes passou basicamente batido pelas platéias ao redor do mundo – um erro que de forma alguma você deveria cometer. Menos empolgante é A Melhor Escolha, projeto do ano passado que, assim como Newton Boys lá atrás, revisita uma obra importante da Nova Hollywood: no caso, A Última Missão (1973), o filme de Hal Ashby em que Jack Nicholson e Otis Young escoltavam Randy Quaid à prisão da Marinha, mas ficavam amigos no processo. Desta vez com Steve Carell, Bryan Cranston e Lawrence Fishburne assumindo os personagens, a produção tem as marcas típicas de Linklater – os longos diálogos, nos quais é um prazer se perder, e os desempenhos irrepreensíveis do elenco – mas, assim como Sujou… Chegaram os Bears, trata-se um prazer mais modesto, à sombra do gigante que lhe deu origem.

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Com toda a riqueza humana e artística dos seus filmes, tantas vezes exaltadas ao longo deste artigo, Richard Linklater faz jus a uma pecha que costuma provocar urticárias nos independentes: a de mestre. Posso dizer honestamente, como espectador levado a rever vários de seus filmes, e a descobrir tantos outros, que desde Hayao Miyazaki uma Filmografia para o Cine SET não oferecia doses tão prolongadas de emoção e prazer. Razão pela qual eu urjo você, leitor, a largar esta tela e dedicar algumas horas de sua vida às preciosidades de filmes como Jovens, Loucos e Rebeldes, a trilogia Antes, Boyhood, Waking Life e outros highlights desta nossa jornada. Vá por mim – diante de um cinema parado como esse, os filmes movimentados é que parecem rudes, vulgares, desnecessários.

*Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.