Os anos 2000 marcaram o auge da fase gangorra de Woody Allen: ora vemos filmes excelentes como “Match Point” e “Meia-Noite em Paris”, ora umas desgraças como “Igual a Tudo na Vida” e “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos”. O cineasta novaiorquino, entretanto, tem se especializado mesmo em obras corretas que se destacam por um brilho individual. Foi assim com Cate Blanchett em “Blue Jasmine” e a direção de arte de “Café Society”. Isso se repete novamente com “Roda Gigante” pela grandeza de Kate Winslet e a fotografia de Vittorio Storaro.

Ambientada na praiana Coney Island dos anos 1950, “Roda Gigante” acompanha a história de Ginny (Kate Winslet), uma garçonete frustrada por não ter visto a carreira de atriz concretizada. Casada com Humpty (James Belushi), ela leva uma vida medíocre com um filho problemático até conhecer e se envolver com o escritor e salva-vidas Mickey Rubin (Justin Timberlake). A situação se complica mesmo com a chegada da filha do primeiro casamento do marido, a bela Carolina (Juno Temple). Ameaçada após delatar o namorado gângster, a garota se refugia em Coney Island e acaba se apaixonando também por Rubin.

Acima de tudo, “Roda Gigante” é um filme sobre sonhos destruídos e das nossas mentiras para aguentarmos o peso terrível da realidade no melhor estilo Douglas Sirk. Capaz de imaginar diálogos sentada em frente ao espelho treinando gestos e falas, Ginny mantém a aura sonhadora mesmo tolida em uma vida medíocre. Vítima de violência doméstica, sem muito interesse em cuidar do filho problemático, desvalorizada pelo marido por ser garçonete de um restaurante: não é à toa que a primeira possibilidade de agarrar algo novo que surge em anos seja feita de maneira tão desesperada e pouco racional. Por mais que tome decisões para lá de questionáveis, especialmente a relativa ao desfecho da trama, quem pode culpá-la totalmente pela tamanha complexidade dos dramas e das angústias as quais vemos passá-la dia após dia?

Kate Winslet aproveita esta personagem fascinante para construir um dos melhores papéis da carreira. A capacidade de ir da ternura ou ao desespero, da declaração de amor à desconfiança são feitas de forma tão sutil que ela consegue exprimi-las em um único momento. A excelência da atriz é tamanha que percebe-se o encanto de Woody Allen ao deixar um monólogo completo de quase dois minutos na sequência final com tom à la “Crepúsculo dos Deuses”, esquecendo praticamente da presença de Justin Timberlake em cena.

Falando em monólogo, Woody Allen se utiliza de uma linguagem teatral nos principais momentos dramáticos de “Roda Gigante”. As cenas ambientadas na casa são feitas, em grande parte, como plano-sequência, o que permite o brilho das atuações de Winslet e James Belushi. Sobretudo, a decisão permite ao genial diretor de fotografia Vittorio Storaro (o mesmo de clássicos como “Apocalypse Now” e “O Último Imperador”) fazer composições fortes. O contraste do cabelo de Ginny quase pegando fogo em uma cena de esperança da personagem pela iluminação avermelhada em relação com o desespero dela ao saber das conversas de Rubin com Carolina em tons de azul como se tivesse vendo tudo afundar criam efeitos imagéticos que casam muito bem com a intensidade da protagonista.

Com dois pontos fora da curva, é uma pena que o roteiro de “Roda Gigante” deixa tantas pontas soltas. A única personagem a rivalizar na complexidade com Ginny é o marido dela interpretado por James Belushi: afinal de contas, apesar de ser um sujeito condenável por agredir a mulher no momentos de alcoolismo, não dá para se sensibilizar com o temor e sonhos dele para com a filha, superando o orgulho para vê-la crescer e deixar o mundo do crime. Quanto aos demais, Justin Timberlake e Juno Temple são burocráticos e não possuem personas suficientemente boas para serem exploradas, enquanto a trama do filho de Kate Winslet se torna mero alívio cômico. Se fatos como a hipocondria e as menções literárias são simpáticos dentro do universo Woody Allen, a sensação de déjà vus se mantém firme com tramas sobre a obsessão levando à destruição da sanidade (“Blue Jasmine”) e decisões morais (“Match Point” e “O Sonho de Cassandra”).

Nesta altura do campeonato, esperar de Woody Allen uma obra-prima ou um filme à altura de seus melhores trabalhos, talvez, seja pedir demais. “Roda Gigante”, por outro lado, cumpre com louvor a cota anual de obras do diretor. Não sendo coisas como “Para Roma, com Amor” ou “O Homem Irracional”, a gente aceita.