Pode-se dizer que quando o crítico de cinema Nathan Rabin criou o termo “Manic Pixie Dream Girl” no artigo “The Bataan Death March of Whimsy Case File #1: Elizabethtown”, ele criou um monstro que provavelmente o assombrará até o fim de seus dias. O termo designa um tipo específico de personagem feminina extremamente recorrente no cinema, o da garota que surge na vida do protagonista para ensiná-lo a abraçar as doçuras da vida com seu jeito cândido, esquisito, roupas retrô e (falta de) personalidade. Dessa maneira, a MPDG criada por roteiristas – homens – tem a função única de encantar o outro – homem –, sem ter nada além disso para direcionar suas ações, pensamentos e sentimentos. Podemos sintetizar a ideia dizendo que ela é a carreira de Zooey Deschanel? Talvez.

A questão é que o conceito de MPDG se consolidou de tal maneira no cinema norte-americano que ele consta em quase todas as críticas a filmes como “Aconteceu em Elizabethtown” (2005), “500 dias com ela” (2009) ou “Garden State” (2004). O problema disso? Dar nome aos bois e não se pensar mais sobre o que isso representa para o cinema e para o público. Foi justamente uma diretora mulher, Valerie Faris, em parceria com Jonathan Dayton, que decidiu brincar com o conceito como forma de refletir sobre seu significado, e eles fizeram isso com “Ruby Sparks” (2012).

Em “Ruby Sparks”, o protagonista é Calvin Weir-Fields (Paul Dano), um escritor hipster que alcançou o sucesso com seu primeiro livro, mas sofre para iniciar o segundo. Num ato fantástico, ele cria uma MPDG como personagem desse livro, a Ruby do título (Zoe Kazan), mas ela ganha vida e os dois engatam um namoro. Nada mais conveniente: ela é exatamente como Calvin gostaria que fosse, “a namorada perfeita”, uma vez que ele próprio a criou. Subentenda aí que a vida e psique de Ruby possuem profundas lacunas, uma vez que a MPDG é pura representação. Tudo parece bem, até que o pior acontece: ela ganha uma personalidade e se torna, de fato, humana. Com isso, passa a ter desejos próprios e vontades que, eventualmente, entram em desacordo com o que Calvin considera ideal. É a partir daí que se começa a mostrar o abismo entre uma pessoa de verdade e uma MPDG.

“Ruby Sparks” pode não ter sido o sucesso que foi o filme anterior de Faris e Dayton, “Pequena Miss Sunshine” (2006), mas, de certa maneira, os dois filmes carregam uma noção de unidade. Neste último, a menina Olive (Abigail Breslin) quer se encaixar no padrão do mundo dos concursos de beleza infantis, o qual não condiz com quem ela realmente é, para depois se dar conta disso e valorizar mais sua própria personalidade e os laços familiares. Em “Ruby Sparks”, a personagem título tem o encaixe perfeito no mundo ficcional de Calvin, mas ele se desfaz quando tenta ser trasposto para o mundo real, e isso na verdade não é uma derrota para Ruby, mas uma vitória, assim como o foi para a pequena Olive. Ambas são mais complexas, mais imperfeitas, porém interessantes, do que a “caixinha” de onde saiu (no caso de Ruby) ou na qual tentou entrar (no caso de Olive).

Visualmente, “Ruby Sparks” brinca de forma inteligente e crítica com as referências associadas às comédias românticas de pegada indie. O figurino dos protagonistas ajuda a compor e, posteriormente, ironizar os devidos estereótipos que Ruby e Calvin representam de início: ela, com roupas cheias de detalhes vintage, meias-calças e outras peças por vezes berrantes para simbolizar “novas cores” para a vida dele, que aparece com os repetitivos tons de cinzas, marrons e azuis. A fotografia, por sua vez, trabalha com iluminação delicada e cores levemente dessaturadas, dando um aspecto etéreo que auxilia o fato de que o filme busca complexificar a personagem feminina para torná-la realista, ao mesmo tempo em que o surgimento desta se dá em circunstâncias fantásticas.

A reflexão levantada pelo filme se torna ainda mais curiosa quando percebemos que o roteiro de “Ruby Sparks” foi escrito pela atriz que a interpreta, Zoe Kazan. Neta do diretor Elia Kazan e filha dos roteiristas Nicholas Kazan e Robin Swicord, Zoe apresenta os personagens da maneira mais caricata possível, tanto Ruby quanto Calvin. Ele é o jovem branco, de classe média alta, gosto pelo indie e pouquíssima maturidade quando o assunto é relacionamento, e mesmo que você conheça pelo menos uma pessoa que confere com essa descrição, isso não extingue o fato de que a tal pessoa é mais do que isso, da mesma maneira que Calvin e Ruby se mostram mais do que os arquétipos que inicialmente representam no filme. Além de levantar essa discussão, o roteiro de Kazan flerta com outras questões para além do gênero, tal como a relação entre autor e obra e a natureza do ato da criação artística, entremeando o roteiro com diferentes camadas de significação que vão dando algo deveras raro ao subgênero das comédias românticas: profundidade.

Retornando aos protagonistas, Kazan é esperta ao dar a ambos os personagens – homem e mulher – uma jornada de autoconhecimento. Se por um lado, Ruby aprende algo ao se ver como um ser humano completo, Carl também aprende algo sobre si mesmo ao perceber sua inabilidade de ver uma pessoa do sexo feminino não como uma “garota”, mas como uma “pessoa” (pontuação esta feita explicitamente por um outro personagem). Simbolicamente, esse ponto da trama não deixa de ser uma crítica aos roteiristas e diretores (principalmente os americanos, sejam eles oriundos de grandes produções ou do meio alternativo) que se encantam criando histórias nas quais os seus protagonistas masculinos são apenas os babacas brancos de classe média que melhoram um pouco ao usarem, carinhosamente, mulheres sem personalidade para mudarem suas vidas. “Ruby Sparks” parece dizer: “sério que essa é a melhor história que vocês conseguem escrever?”.

 Uma pena que o final destoe um pouco do que o filme propõe ao longo de sua duração, sendo um pouco mais doce que o necessário. Ainda assim, o que o filme potencialmente proporciona no geral é uma reflexão sobre relacionamentos tão interessante quanto a que vimos (e adoramos) em “Brilho eterno de uma mente sem lembranças” (2004), para citar só um exemplo de filme romântico que foge dos padrões que acabam por fixar na cultura estereótipos de como homens e mulheres devem ser na cabeça do público. Afinal de contas, as fantasias femininas podem até precisar de alguns Mr. Darcy ou mesmo alguns Christian Grey, assim como as masculinas sonham com as Megan Fox da franquia “Transformers”, mas alguns “lembretes cinematográficos” de que a vida não é bem um romance de Jane Austen e nem um filme do Michael Bay são sempre bem-vindos.

 Nota: 8,0