Para muitos, o cinema é a arte dos sonhos. Viver momentos que só existem nesse ambiente. O que importa são as grandes cenas de ação, os melodramas que comovem seus personagens a agir. É o close, é a câmera na mão correndo atrás de alguém, é a cena de solidão na morte de alguém próximo de um personagem principal. Todos os clichês, sejam eles de narrativa quanto imagéticos, já se consolidaram no imaginário popular. E para muitos, são regras intocáveis.
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Porém, muitos esquecem que a vida vai muito além desses momentos “grandes”. Vai além desses momentos de “representação” sobre o que passamos dia a dia. Para Claire Denis e seu co-roteirista Jean-Pol Fargeau, o “especial” é o que ocorre em uma noite após “35 Doses de Rum”. Momentos inesquecíveis que queremos levar para a vida. Seja um aniversário ou o casamento de sua filha. E mesmo sendo momentos “banais”, para um cinema mais escapista, essas situações na grande tela também são levadas por seus próprios clichês a criarem momentos “inesquecíveis”.
O que propõe então este longa de Claire Denis? Posso responder que seria o contrário sobre o que comentei mais acima, mas isso seria reduzir demais a discussão. “35 Doses de Rum” busca relacionar diversos temas sociais e sentimentais em sua trama para tentar conversar com o espectador sobre o que é a vida cotidiana. Mais especificamente sobre o que ela é feita e o que dá liga para que dia após dia diversas pessoas continuem em seus trabalhos e em suas famílias.
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Um aspecto que chama bastante atenção no filme é o contraste entre justamente essa noção “cotidiana” e o caráter mais escapista do longa. E aqui não digo “escapista” como algo de teor mais onírico, mas sim momentos decisivos para os personagens, como uma dança ou a morte de um amigo. Se para moldar seus personagens, as regras de roteiro pedem alguma ação “extraordinária” em um momento-chave, aqui elas apenas aparecem esporadicamente por razões de que, na vida real, elas existem, e não é possível evitá-las. No entanto, estes momentos não são calculados pelo destino, para que mudemos ou que façamos algo diferente por causa daquilo. Isso é o que uma narrativa nos delega, e para Denis, esse mecanismo não é necessário para que as pessoas mudem.
FARSAS E LEMBRANÇAS
Em “35 Doses de Rum” somos apresentados ao núcleo de personagens focados em Lionel (Alex Descas) e na filha Jo (Mati Diop, a diretora de “Atlantique”). Através deles, conhecemos Noé (Grégoire Colin), amigo de infância de Jo e que nutre sentimentos por ela; e Gabrielle (Nicole Dogué), ex-mulher de Lionel que busca sempre se reaproximar dele. Um tabuleiro de xadrez armado para as mais diversas sacadas melodramáticas em busca de lágrimas e risos de seus espectadores. Aos poucos, “35 Doses de Rum” os entrega, mas dando a indicação de que são artificiais.
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Essa característica potencializa em algumas cenas como quando Noé e Jo dançam e se beijam. Sobe a música “Nightshift” ao fundo enquanto os dois se olham de forma romântica e ingênua, como em um filme de romance propriamente. É uma farsa, mas que funciona por se destacar do resto do filme. Faz parte daqueles momentos que guardamos em nossas memórias e o recriamos tantas vezes que a ingenuidade e naturalidade de quando ocorreu vão se embora. Fica somente o que buscamos lembrar.
E é esse um elemento que faz com que “35 Doses de Rum” funcione tão bem como um diário sobre esses personagens. Afinal, quando saímos da farsa, voltamos aos longos caminhos de trem percorridos por Lionel durante seu trabalho como maquinista. As mais diversas luzes e cores compõem o céu nesses momentos, dando talvez o ar para quem assiste de que a cada minuto é uma “beleza natural” diferente e que isso deve recompensar o trabalho maçante de Lionel. Para ele é apenas um trabalho e, se necessário, como conta para um amigo, imagina-se com sua filha andando a cavalo sobre aqueles trilhos.