No cinema de terror, é comum celebrar as franquias comercialmente famosas em razão dos seus “vilões”, os verdadeiros ícones do gênero. Jason Voorhees, Freddy Krueger, Michael Myers, Pinhead e mais recentemente Jigsaw, foram protagonistas de séries que deixaram significativas “marcas” do medo no imaginário do fã de horror. Tenho um carinho especial por Jason e Sexta-Feira 13, pois foi a primeira série de terror que acompanhei na minha adolescência, possuindo uma importância afetiva inestimável.

Porém, quero fazer uma homenagem a um vilão que sempre trilhou o caminho do medo, sem chamar atenção.  Ele é Tall Mann interpretado assustadoramente pelo ator Angus Scrimm – falecido este ano. Longe das franquias milionárias ou dos holofotes do mainstream hollywoodiano, o dito “homem alto” pertenceu a uma saga oriunda do cinema B de terror que como um bom vinho do medo, ofereceu criatividade, bons sustos, diversão e discussões pertinentes do mundo fantástico. Este é o caso de Fantasma, franquia criada por Don Coscarelli em 1979 e que até o momento teve quatro continuações interessantíssimas

Mesmo obscura perante ao grande público, Fantasma é uma série cult a ser descoberta, muito em razão do seu jeito cativante e original. Diferente do que ocorre com as outras franquias de terror, onde as continuações são mais do mesmo pela repetição da sua fórmula, a criação de Coscarelli sempre valorizou o texto, expandido a série além do terror, para outros gêneros como a ação, o suspense e a ficção científica. É interessante que todas as continuações respeitaram o filme original, mantendo um equilíbrio raro entre uma e outra sequência, criando uma consistente mitologia em torno dela.

Neste sentido, o envolvimento de Coscarelli tanto nos roteiros quanto na direção de todos os filmes – exceção da quinta parte – e do elenco de atores que dedicou-se a interpretar os mesmos personagens nestes 36 anos desde o lançamento do primeiro filme, transformaram Fantasma uma espécie de Boyhood (2015) do mundo de terror. Por isso, seguem algumas análises para entender esta adorável franquia:


O Verão do Medo de 1979

Don Coscarelli é um cineasta que assim como John Carpenter, Larry Cohen, Fred Dekker e Stuart Gordon exerce um fascínio e amor pelo gênero de terror. Depois de dois curtas-metragens amadores que misturavam comédia e terror, ele lançou Fantasma –  que recebeu um subtítulo nacional de Noite Macabra – no verão de 79. Este período é considerado pela revista americana especializada em terror, Fangoria como o verão do despertar do medo, pois foram lançados neste ano,  Alien – O Oitavo Passageiro, Despertar dos Mortos e Zombie.

Em entrevista ao documentário em homenagem a franquia, Phantasmagoria, o cineasta disse que Fantasma era “figura da imaginação, uma fantasia. Um corpo humano que está onde não deveria. É um monte de coisas sinistras. É bem estranho e surreal, pensei que daria uma boa temática para um filme de terror ”. O próprio enredo do filme surgiu de um sonho ainda adolescente do diretor que imaginou sendo perseguido por uma esfera metálica. Uma das curiosidades do filme é que a sua metragem original tinha 3 horas de duração e o cineasta a editou para 90 minutas com diversas cenas ficando de fora. Mas engana-se quem pensou que este material não teria utilidade.


O Pesadelo Macabro

Em Noite Macabra, acontecimentos estranhos acontecem em uma pequena cidade americana. A morte de um rapaz leva Mike (o ótimo Michael Baldwin), seu irmão Jody (Bill Thornbury) e o amigo sorveteiro-careca-com-rabinho-de-cavalo Reggie (o divertidíssimo Reggie Bannister) a investigarem o cemitério local, onde o agente funerário Tall Mann (Angus Scrimm) guarda bizarros segredos. Coscarelli realizou o filme na marra com orçamento limitadíssimo de apenas 300 mil dólares. Filmava apenas nos finais de semana para aproveitar o equipamento alugado na sexta-feira e devolvido na segunda-feira, pagando apenas uma diária. Para completar, ele também produziu, editou e utilizou familiares como figurantes em várias cenas para poupar os gastos, típico cinema independente feito na cara e coragem

Fantasma é o exemplo notável de como filmar um pesadelo, isto é, repleto de imagens e momentos bizarros que remetem a uma viagem onírica que envolvem anões, esferas voadoras, sangue amarelo, cenários estranhos…. o roteiro parece até não apresentar lógica ou coerência, só que o seu texto é rico em simbologias, trabalhando dentro da vertente do terror, as ansiedades juvenis como o luto e a perda, o despertar sexual, os sentimentos de inadequação. Coscarelli também afina nas entrelinhas do seu texto, o medo da morte, sendo este sentimento macabro que faz o espectador criar um vínculo estranho para acompanhar o processo de rito de passagem de Mike da adolescência para vida adulta.

O destaque mesmo de Fantasma é sua narrativa surreal, onde ficamos na dúvida do que é real e o que é imaginação. A atmosfera onírica criada pelo diretor lembra os contos góticos de Edgar Allan Poe e a soturna trilha sonora instrumental (você pode ver abaixo) dão o tom de um horror intimista e excêntrico. Tall Mann, o agente funerário/coveiro é interpretado por  Scrimm em desempenho sinistro e macabro que o marcaria para sempre com um dos ícones do cinema de terror. Por fim, Fantasma joga o público dentro de um horror sensorial cinematográfico excêntrico e delirante.

A continuação “Show do Milhão”

O sucesso do original, gerou outras quatro continuações, lançadas com intervalos consideráveis  – 88, 94, 98 e o último capítulo, lançado em 2016, no início deste mês. A demora entre uma e outra continuação, se deu pela dificuldade em arrecadar verba, com exceção da segunda parte que é o “primo rico” da franquia por ser financiado pelos estúdios da Universal, que via na série a possibilidade de uma nova série de terror de sucesso e investiu 3 milhões na produção (vale lembrar que o original custou “apenas” 300 mil).

Fantasma 2 ajudou a  série a ganhar popularidade ao redor do mundo, mas fugiu do estilo autoral, adquirindo uma narrativa mais linear e menos louca – ainda que mantenha certas excentricidades de Coscarellli. Com uma produção melhor estruturada, a continuação expandiu e ampliou seus horizontes refletindo em cenas grandiosas que abusavam dos efeitos especiais através de um gore mais nojento e a caracterização super elaborada das esferas voadoras.

O enredo em torno da mitologia da saga foi muito bem expandido, porém o estúdio mantia grande parte do controle da liberdade criativa da franquia, impedindo que Coscarelli utilizasse situações de sonhos e ambiguidades dentro do seu texto. Inclusive o jovem Michael Baldwin foi substituido porque os produtores queriam um ator mais gabaritado, assumindo ator James Le Gross como interprete de Mike – o jovem Brad Pitt chegou a fazer audição para o papel.

Praticamente, Fantasma 2 é considerado pelos fãs uma obra mais focada na ação do que no suspense/terror psicológico do original. Em contrapartida, Coscarelli consegue driblar as imposições do estúdio realizando uma obra divertida e cínica com um pé na ficção científica. Jamais tanta repetir o original e o roteiro aprofunda a mitologia do “Tall Man” levando a franquia a novas direções. Considero esta sequência uma espécie de Evil Dead 2, bem mais acelerada e dinâmica.


A volta do estilo autoral

Mesmo se pagando, o filme não satisfez as expectativas da Universal. Logo, Coscarelli se viu mais uma vez com o orçamento apertado. Por isso resolveu chutar o pau da barraca e explorar de vez os elementos experimentais da série. Fantasma III – O Senhor da Morte é sem dúvida o mais divertido da série, misturando com eficiência humor, terror e violência. Lançado seis anos depois, esta terceira assume-se como uma verdadeira Sci-fi B flertando com viagens no tempo e dimensões paralelas. O roteiro retoma algumas ideias do primeiro filme, inclusive todo elenco original retorna, sem imposição do estúdio Baldwin volta ao papel de Mike.

O sorveteiro Reggie se torna o protagonista desta sequência mostrando o quanto o ator Reggie Bannister está bem à vontade como o personagem – Reggie é o Ash de Bruce Campbell de Evil Dead. O ritmo do filme é melhor, mostrando uma regularidade do início ao fim. É raro encontrar uma terceira parte do mesmo nível do original. O bom sucesso no circuito alternativo levou Coscarelli a ser cobrado pelos fãs para uma nova sequência. O problema é que grande parte do recurso financeiro que o diretor tinha, foi todo gasto na terceira parte.

O ditado quem não tem cão, caça com gato foi alternativa utilizada pelo cineasta para driblar as dificuldades. Fantasma IV – O Pesadelo Continua é 50% construído com cenas que sobraram do filme original – se lembra que eu disse que o diretor filmou quase 3 horas de material? Bom ele deve ter pensado “se não temos dinheiro é só pegarmos a sobra de material dos filmes anteriores”. Mais nem por isso, a quarta parte é picaretagem. Ela é sensacional por costurar cenas inéditas do original na trama misturando o passado e o presente da série, quase uma espécie De Volta do Futuro, onde você vê os personagens retornando aos eventos do passado do filme original.

Por sinal, a ação e a comédia mostrada nos anteriores é abandonada, retornando ao estilo surreal e sombrio do original. O tom de Sci-fi é assumido de vez com uma trama envolvendo viagens no tempo e de investigação sobre a origem de Tall Man. Coscarelli fecha algumas arestas propostas no terceiro filme, mas muita coisa continua sem explicações – a ideia era fazer uma quinta sequência logo em seguida, mas que foi abortada pelas questões financeiras. Porém, o final inconclusivo desta quarta parte não deixava de ser um belo desfecho para a saga de Mike, Reggie, Jordy e o grande vilão Tall Mann, mas…….

Resultado de imagem para Fantasma V – Ravager
O Fim da saga?

Coscarelli tinha a intenção de lançar a quinta parte um ano depois da quarta. Esse desejo foi vencido pela falta de grana que levou o filme entrar em um estado de limbo de 20 anos. O final prometido pelo diretor para 1999 seria um desfecho apocalíptico com um roteiro escrito em parceria com Roger Avary [co-roteirista de Pulp Fiction (1994) e amigo de Tarantino]. A quinta e última parte da série Fantasma virou uma lenda urbana digna da continuação de Os Goonies (1985).

Depois de décadas e graças a ferramenta de crowdfunding, Coscarelli conseguiu reunir uma grana razoável – mas longe do ambicioso apocalipse que ele desejava criar –  para rodar Fantasma V – Ravenger, cuja produção iniciou, acreditem, em 2008 e só concluída no começo deste ano. Foi filmado a doses homeopáticas, nas horas de folga de todos os envolvidos. Para promover o lançamento do novo filme, o midas J. J.Abrams, fã de carteirinha da série, através da sua produtora Bad Robot restaurou de graça em 4k, o filme original de 1979 para ser lançado antes no cinema e promover o novo episódio.

Fantasma V – Ravenger foi lançado em circuito restrito de cinemas no dia 7 de outubro deste mês, sendo disponibilizado em algumas plataformas digitais na semana seguinte. Talvez o cansaço gerado pela persistência em lançar o novo filme, Coscarelli pela primeira vez na franquia, deixou a cadeira de direção, passando o bastão para David Hartman, que escreveu o roteiro do longa junto com o cineasta.

Enquanto aguardo uma boa versão para conferir o novo episódio, é notório que realmente este deve ser o último filme da saga, afinal o nosso querido Angus Scrimm faleceu este ano. Inclusive Coscarelli já deu uma entrevista que a produção agilizou as filmagens para aproveitar o máximo possível do ator que na época já se encontrava debilitado pelos problemas de saúde.

Independente da qualidade do novo filme, vale dizer que a saga Fantasma é a série de terror mais bacana em relação a enredos, personagens e principalmente a solidez das continuações. É raro de encontrar nas séries de terror, uma preocupação com o planejamento do roteiro e cuidado com os personagens e história. Dão a ela a espontaneidade, familiaridade e a sensação de que tudo foi realizado por meio de uma dedicação enorme por parte dos envolvidos, preocupados  mais com a qualidade do produto, em contar uma história consistente e autoral do que criar uma série apenas para faturar comercialmente

Se o novo filme simboliza de certa forma o fim da série, o pesadelo B  cinematográfico de Coscarelli ainda não chegou ao seu fim, pois a  aventura de Mike, Jody, Reggie e Tall Mann ainda precisa ser descoberta por muitos novos fãs do gênero. Eu envelheci juntamente com os filmes e sou muito grato pelo “estrondo” que eles deixaram na minha cabeça.