“Você seria ator se fosse homem?” seguido de uma resposta negativa por todas as entrevistadas. Assim é introduzida a conversa no documentário “Be Pretty and Shut Up” (“Sois Belle Et Tais-Toi!”, no original).

Lançado em 1981, em meio a ebulição da segunda onda do movimento feminista, esse pequeno projeto com propósito de dar voz a mulheres sobre o ser atriz na época, vai muito além do registro de um “passado” sexista do cinema ao desvelar a continuidade de um cenário semelhante mais de 40 anos depois.

Idealizado e dirigido pela atriz e ativista Delphine Seyrig, estrela de filmes como “Jeanne Dielman”, de Chantal Akerman, e “O Discreto Charme da Burguesia”, de Luis Buñuel, o documentário é formado por uma série de entrevistas com atrizes do cinema francês e hollywoodiano, e de nomes como Jane Fonda, Maria Schneider e Ellen Burstyn.

Com uma câmera, um gravador e a experiência dessas 24 mulheres, companheiras de ofício, o trabalho de Seyrig vai além de documentar: ela direciona o olhar para o desabafo sobre o tratamento dado a mulher dentro de uma indústria historicamente machista e patriarcal. Sem pretensão ou demagogia, são mulheres falando sobre suas vivências na profissão em comum entre elas.

UM CINEMA AINDA EXCESSIVAMENTE MASCULINO

No que mais parece uma conversa de amigas, ao longo das falas, elas dão dimensão ao “male gaze” e seus estereótipos com espontaneidade. Cada resposta guarda importância e é ponto chave das demandas. Mas a lucidez de Jane Fonda, ao falar da objetificação no início da carreira ou a primeira vez que ela atuou num filme sobre a amizade entre duas mulheres, é brilhante. Ainda, a coragem da denúncia sutil de Maria Schneider, quem nunca teve justiça, contra o abuso de Marlon Brando em “O Último Tango em Paris” já naquela época.

Mesmo lançado há décadas, muito (ou quase tudo) do que é dito pelas atrizes continua verdadeiro. O mérito de “Be Pretty and Shut Up!” é justamente esse: explicar mais sobre o hoje que necessariamente ser um registro histórico de algo que ainda é realidade. No decorrer das entrevistas, vem o assombro em perceber muito mais presente que passado em cada situação compartilhada.

Depois anos de evolução social e conquista de direitos das mulheres, aconteceram mudanças positivas. Movimentos como #MeToo e Time’s Up (mesmo deturpados em algum momento) são provas disso, mas igualmente o oposto, confirmam que ainda não chegamos lá e as reivindicações permanecem.

A ausência de qualidade técnica ou estilo pouco importa aqui, porém o espaço mínimo dado a atrizes negras, exclusivamente representadas por Maidie Norman que fala brevemente sobre os papeis de subalternidade sempre relegados a elas, é um problema. Ainda assim, trata-se de um documento essencial para ter perspectiva das questões de gênero atualmente dentro da indústria do cinema. E entender, por exemplo, o porquê de ser muito sintomático uma conquista como de Chloé Zhao, a segunda mulher a receber a estatueta de direção no Oscar em mais 90 anos de premiação.

Talvez uma das frases que melhor simboliza e condensa tudo o que é dito seja a de Schneider, “os produtores são homens, os técnicos são homens, os diretores, a maioria, são homens. A imprensa é mista, mas a maioria são homens. Os agentes são homens. Os responsáveis que entregam o roteiro, que dão conselhos são homens. E os assuntos que eles abordam são para homens…”.

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