O que determina um gênero ou subgênero cinematográfico? O que faz a audiência reconhecer, por exemplo, uma comédia ou um romance? Normalmente, é muito simples e óbvio identificar um filme: as linhas gerais são bem demarcadas e os cacoetes já reconhecidos, mas existem aqueles filmes onde os traços se confundem. “Yella”, do diretor Christian Petzold, é um desses. Dito como inspiração do grande clássico do horror dos anos 60, “O Parque Macabro”, o filme, mesmo óbvio em muitos elementos, nubla até o espectador mais experiente com um suspense sóbrio e certeiro.

O longa, cujo roteiro também é assinado pelo cineasta alemão, acompanha a jovem Yella Fichte (Nina Hoss) que, ao tentar escapar do marido violento, aceita um novo emprego em uma cidade vizinha. É a partir dessa premissa em romance, drama e suspense se encontram.

Classificado como thriller, a narrativa de Petzold, embora siga algumas convenções do gênero, preserva de modo único uma atmosfera que pouco revela onde se encaixa. Um “suspense da realidade”, mas sem manipulá-la, “Yella” se desenvolve como thriller da vida real, mundano e, acima de tudo, corriqueiro. Muito mais próximo de um determinado público que o assiste (leia-se mulheres), do que se gostaria.

De cara, o filme já revela a que veio. A protagonista luta para se libertar de um casamento abusivo com um marido obsessivo e hostil, responsável por marcas onde habita um estado de pavor e angústia que a acompanham durante todo o desenrolar da história. Contudo, a real consequência dessa relação só é verdadeiramente dimensionada com o desfecho do filme.

EM ESTADO DE FUGA CONSTANTE

Petzold usa de uma questão íntima da personagem, porém muito mais coletiva que pessoal, por se tratar de um problema sistémico e sintomático da sociedade patriarcal que vivemos, para escancarar sem reservas, mas também sem demagogia, como a realidade pode ser muito mais aterrorizante.

À medida que uma Alemanha pós-reunificação tenta se reconstruir no plano de fundo, Yella também busca sair das sombras de um passado próximo e doloroso, mas que ainda é o seu presente, seja pela dificuldade em se refazer ou pelos fantasmas que a perseguem. E, por isso, ela está sempre em movimento, em constante fuga, no trem entre sua cidade natal e a nova vida ou no carro do empresário que a oferece alguma esperança.

O terror não deixa de acompanhá-la e crescer dentro do enredo. Personificado não apenas no ex-marido stalker, como também no quase colega de trabalho que de um breve contato, uma troca de gentilezas, toca seu corpo inapropriadamente. Situações tão próximas, nada estranhas ou distantes da realidade, mas que amedrontam. Em “Yella”, o medo vem não do desconhecido, mas do habitual.

 A protagonista vive seu próprio horror e o de muitas. Com isso, o filme é construído de forma ainda que pareça se assumir como alegoria fantasmagórica, é, na verdade, concreto. Um retrato da realidade. E, ainda que do início do século, “Yella” alcança com maestria uma época onde questões e violência de gênero são pauta em evidência mais do que nunca.

Apesar de fazer uso de certos recursos narrativos que delatam de cara sua fonte de inspiração – inclusive intitulado como remake não-oficial da obra-prima de Herk Harvey, que podem revelar uma ou outra coisa, é possível adentrar na história sem se levar por esses elementos e, assim, experimentar outra atmosfera fílmica. A escolha sonora crua contribui, transportando para esse estado de permanente perigo que vive a protagonista, mas sem os exageros comuns nesse meio.

Ainda que o longa insista num desenvolvimento mais econômico, com escolhas mais simples sem artifícios extravagantes, não deixa de ter potência. Pelo contrário, é nessa sutileza não-sutil que ele captura. Diferente das emoções efêmeras geradas por sensacionalismos, comuns no gênero e em produções nessa temática feitas para vender, “Yella” arrebata aos poucos, sem se deixar perceber e ali permanece.