ALERTA – O Texto contém spoilers, só não conte a mamãe

Há um ditado popular que diz: “a tua fama precede o teu nome”.

Numa tônica semelhante há, também, o famoso: “Diz-me com quem tu andas e te direi quem és”.

As duas sentenças podem aplicar-se a “Sharp Objects”.

Inspirado no thriller homônimo de Gillian Flynn, do badalado “Garota Exemplar”, sob a direção de Jean-Marc Vallée, da sensível “Big Little Lies”, e contando com Amy Adams, cujo nome aparece antes mesmo do letreiro da série, no papel principal e como produtora executiva ao lado de Vallée e Flynn. Fama e parceria caem como luva para descrever em um primeiro momento a minissérie da HBO criada por Marti Noxon.

“Sharp Objects” (“Objetos Cortantes” em português) é o primeiro livro de Flynn, sendo uma obra menos densa e arrebatadora que “Garota Exemplar”, porém é tão apreciável e visceral quanto acompanhar a família Dunne. A obra inicia as características proeminentes do universo de Gillian Flynn, o qual abarca questões familiares, violência – muitas vezes velada – contra mulher e personagens femininas bem construídas. Nesta trama, em particular, acompanha-se Camille Preaker (Adams), uma jornalista que retorna a sua cidade natal, Wind Gap, para fazer uma série de reportagens sobre o desaparecimento de duas meninas. Nesse retorno, ela precisa resolver questões que deixou para trás enquanto confronta seu presente.

O ritmo da série é muito semelhante ao adotado pelo livro: lento, enfadonho, com episódios que soam como se a trama não evoluísse. Mas, é neste ponto que Jean-Marc Vallée e Marti Noxon demonstram que a questão narrativa se constrói em torno de tudo que está sendo exposto. Mesmo e principalmente no não-dito. Vallée é um orquestrador por essência visual, por isso, muitas informações estão demonstradas naquilo que a imagem projeta. Seja por meio das cores, do calor ou da montagem contemplada pelos pensamentos de Camille.


Wind Gap Vs. Lar Crellin: o simbolismo das cores em ‘Sharp Objects’

A estética da série é um de seus pontos fortes e um dos segredos para manter o espectador mais atento e fascinado. O próprio ritmo compassado é uma forma visual de mostrar Wind Gap e como a cidade dialoga com a família Crellin. As cores que a permeiam estão constantemente em uma tonalidade de verde musgo, amarelada – como no livro Camille descreve a cor de suas feridas emocionais – ofertando à cidade um matiz antigo como se estivesse estacionada em alguma decadente Era de Ouro Americana.

A cidade é quente, úmida e com um zumbido eterno. As casas têm tonalidade neutra, como o puxadinho de Ashley Wheeler e a casa dos Nash. Toda essa concepção visual aponta para duas características bem estabelecidas na minissérie e acrescentam ao tom de suspense e incômodo que a história carrega: o irreparável e o obscuro.

Se duas palavras podem descrever o sentimento que Wind Gap tem por trás de seu tom verde e enfadonho são elas. E isto constitui a trama que está constantemente envolta desse círculo fechado. Torna-se compreensível que o ritmo seja dessa maneira também, já que durante os oito episódios que se acompanha Camille, é como se o espectador estivesse preso a Wind Gap e suas amarras indigestas como a jornalista.

Em contraponto, a cidade e tudo o que ela representa está na mansão de Adora Crellin (Patricia Clarkson). Diferente de toda Wind Gap, a mansão possui cores fortes, vibrantes e vivas. Com exceção do quarto de Camille, que tem tom amarelado, os outros ambientes possuem cores fluidas, afrontosas, como se toda a vida e juventude da cidade estivesse ali. A coloração usada no figurino dos personagens pertencentes aquele lar, também apontam para isso. Há uma luz em torno de Adora e seus vestidos como se a vida da mãe de Camille fosse a vida em Wind Gap.


As imagens de Sharp Objects

A cinematografia de Yves Bélanger (“Clube de Compras Dallas” e “Livre”) e Ronald Plante, que costumam ser parceiros de Vallée, estabelece o clima incômodo e desconcertante da minissérie. Pela lente deles, Wind Gap está em subexposição. As cenas indicam um ambiente claustrofóbico, sufocante e escuro. Há momentos, como conversas entre Marian (Lulu Wilson) e Camille (Sophia Lillis em flashback, mais um acerto a equipe), em que a luz sobre os personagens é tão densa que é difícil identificar quem está em tela. Neste mesmo contexto, o contraste se torna um dos elementos mais bem trabalhados na fotografia, adicionando certo clima noir na narrativa. Tal aparato fotográfico também contribui para a percepção de calor que a cidade emana, não à toa o suor debaixo das costas do detetive Willis (Chris Messina) estar sempre tão em evidência.

Essa subexposição também acrescenta outra composição à trama. É apenas em Wind Gap que a fotografia é assim. Como se a cidade fosse responsável por criar esse clima na vida de Camille. É perceptível. Nos momentos em que o editor Curry (Miguel Sandoval) aparece conversando com ela via telefone, fica a sensação de ser outra produção audiovisual. A fotografia muda completamente. Há uma superexposição em Chicago, onde Camille se despe dos traumas familiares e do sufocante Missouri.

Vallée é um diretor que gosta de passar informações por meio da construção imagética. No filme “Demolição” (2015), a palavra parece ser apenas algo a somar à mensagem transmitida por meio do visual. Em Sharp Objects, ele procura repetir o seu feito, entretanto, esbarra na Camille de Flynn que gosta de palavras. Que sente fome de palavras, de escrever aquilo que a sufoca. As soluções para apresentar ao público esse vício insaciável é visualmente interessante, mas exige certa atenção.

Para isso, o diretor utiliza flashbacks da vida de Preaker, em que remonta, a partir de frames rápidos, tudo o que a atormenta. Torna-se intrigante que conforme os episódios vão avançando, a composição dos flashbacks ganhe mais frames e o rosto de Lillis se funde ao de Adams. Como se elas fossem realmente a mesma pessoa. A semelhança entre as atrizes e gravar a mesma cena com ambas contribuíram para o diálogo entre o passado e o presente se tornasse atrativo e provocante ao expectador.

Os Crellins

Semelhante ao que fez em “Lugares Escuros” e “Garota Exemplar”, Gillian Flynn evoca uma trama familiar como o centro da narrativa. Apesar de Camille ser atraída de volta a Wind Gap por conta do desaparecimento de Anne Nash e Natalie Keene, o núcleo da trama está na família Crellin e como eles lidam com o retorno da filha pródiga. Os crimes ficam em segundo plano diante da vultuosidade do clã. Em detrimento deste regresso, três gerações de mulheres são expostas aos traumas e as doenças as quais a criação que tiveram reverberou ao longo de suas vidas.

A construção imagética e o roteiro entregam paulatinamente os problemas de seus personagens. Conforme os episódios avançam, os envolvidos na trama vão acrescentando cargas dramáticas e complexidade que só tendem a alimentar o interesse do público. O maior fascínio talvez seja a desarmonia entre as aparências e os desejos de seus protagonistas. É com peças esparsas de um quebra-cabeça que pouco a pouco conhecemos as marcas de Camille, o lado dominador de Amma e a bondade de Adora. E todas elas de alguma forma reagem à maneira como a sociedade as macula.

Adora Crellin, cinematograficamente falando, está constantemente com uma luz em torno de si, nunca diretamente nela, mas como se emanasse da personagem. Indicando a todos as expectativas que existem em torno de si, como uma mulher rica e de referência na sociedade. Desse modo, manter as aparências é o que se espera dela e o piso de marfim do quarto, a qual Camille fora proibida de entrar durante o ano de luto da morte de Marian, é um dos grandes exemplos disso. A cor marfim, um branco próximo a “perfeição”, evidencia a forma como a matriarca se projeta, sempre arrumada, com saltos altos em casa, roupas vivas e claras, como se a pureza que tenta vender a Camille fosse realmente a sua realidade.

Adora é solar. Mas as imposições da sociedade, especialmente sobre a maternidade, lhe cismaram a busca por ser a mãe perfeita, ou ao menos aparentar. Este é o motivo que lhe leva a rejeitar qualquer imperfeição que fuja a sua realidade paralela de flores, cuidados e domínio, por isso o temor do trabalho de Camille influenciar na forma como a sociedade a vê. E para além, a afirmação chocante da falta de amor pela filha primogênita. Um contraponto doentio a uma preocupada mãe.

Quanto a personagem central da minissérie, reagir a sociedade é ir contra tudo o que se espera de uma “moça de família”. Desde a adolescência e sua fome por palavras, dor e sexualidade, Camille flui na contramão. Suas roupas, em contraste com o restante da população de Wind Gap, são escuras. Ela está sempre coberta e puxando as mangas da camisa, como se pudesse esconder-se ainda mais. A personagem absorve para si tudo aquilo que considera ruim, desagradável, chocante e busca de todas as formas não se permitir se sentir confortável consigo mesma, com a pele que habita. Entretanto, são essas falhas que a tornam deslumbrante para Willis e para o público.

Se por um lado, Preaker se automutila como punição e forma de fugir de seus problemas emocionais – em dado momento, ela afirma que ter a dor física é melhor do que as dores que carrega na alma – por outro, ela é marcada pela sua sensação de impotência. Vallée expõe subliminarmente as palavras que transmitem os sentimentos de Camille, enquanto ela lê o significado que elas têm em sua vida no exato momento em que as enxerga. Assim, sagrado se transforma em assustado, uma placa de trânsito vira uma instrução de saída e outras indicações feitas no decorrer da projeção.

As feridas emocionais da protagonista são orquestradas pela forma como a mãe sempre a tratou. A ausência de uma relação estável, que pudesse servir de fonte de atenção e afeto, arruinou a existência da personagem, que via apenas sentido na fatalidade e autodesvalorização. É aterrorizante refletir como o descaso da mãe reverberou durante toda a trajetória da filha.

Como uma mãe abusiva, Adora criou as filhas de maneira doentia, perpetuando o ciclo de traumas a qual fora exposta. E tudo isso reflete na personalidade de Amma (Eliza Scanlen), cujo egoísmo e egocentrismo ultrapassa a irrealidade da mãe, criando um personagem rico, complexo e que merece atenção desde sua primeira aparição. Em um trecho do livro, Camille afirma que uma criança criada com veneno considera dor um consolo. Sutilmente, a produção aponta Amma como alguém que tem prazer na violência, em machucar.

A integrante mais nova da família Crellin é controladora, mesmo fingindo vulnerabilidade. Em um de seus diálogos mais intrigantes, ela afirma que “se você deixa as pessoas fazerem coisas com você, na verdade, você está fazendo a elas”, deixando claro que ela está no comando sem que ninguém perceba que está. Estas características são suas grandes motivações. Por isso, que apesar de prepotente e carregando a inconveniência da adolescência, é um dos melhores personagens construídos por Gillian Flynn e sua intérprete, mesmo ao lado de veteranas, é um dos melhores presentes da minissérie.

Dentro disso, a escolha do trio principal é um dos grandes trunfos da produção. Scanlen é uma das maiores revelações da temporada, com suas transições entre a calmaria e a euforia de Amma e a intensidade com que personificou a personagem. Já Adams está em um dos papéis mais impactantes de sua carreira, fugindo completamente a tudo aquilo que já fez – o que parece tirar o melhor da atriz. Sua Camille é densa, com camadas invisíveis em um primeiro momento, mas que vão se destrinchando conforme o corpo da atriz se prepara para a exposição emocional da personagem. O que pode garantir indicações no Emmy do próximo ano.

E para completar o quadro familiar, em meio a tantas mulheres peculiares, Allan Crellin (Henry Czerny) aparece como um móvel da mansão Crellin que está disponível quando Adora precisa utilizar. Apesar de sua movimentação no último episódio, apenas comprovou sua importância como parte da realidade perfeita e intocável da matriarca Crellin e para escolher as músicas que seriam tocadas após as refeições. É interessante observar que a trilha sonora da produção são diegéticas e originadas, em sua maioria, das escolhas de Allan, que servem como prenúncio para o que acontecerá na sequência a família.


Violência e Sexismo

Assim outra questão discutida em “Sharp Objects” é a violência. Não sob qualquer aparato, mas a velada. O que acontece no lar Crellin soa como se fosse de conhecimento de toda a cidade, como Jackie O’Neill (Elizabeth Perkins) confidencia a Camille no penúltimo episódio, e visto com naturalidade. Afinal, Adora é dona do maior abatedouro da cidade, ajuda crianças com temperamento difícil e está sempre disposta a estender a mão a quem necessita. Como se isso fosse garantia para que ela seja uma boa pessoa. Somado a isso, há, também, a violência contra mulher.

As reações das mulheres Crellin/Preaker a sociedade são, da mesma forma, o modo como elas encaram o sexismo. Em nenhum momento da projeção, o chefe de polícia Vickery (Matt Craven) cogitou a possibilidade dos crimes terem sido cometidos por mulheres. Willis pareceu repudiar a maneira como Camille perdeu a virgindade, quando, em minutos anteriores, calou-se para a forma como os meninos a trataram. E esta visão sexista incentivava Amma a ter seu ritmo intenso e dominador. Isso empresta a obra um tom a mais do que o presente no gênero a qual ela bebe principalmente. Os assassinatos ficam em segundo plano, quando a violência velada da família Crellin assume a tessitura principal.


A escolha do Final

O ritmo lento da narrativa e o final corrido foram um tanto frustrantes para uma narrativa que vinha se entregando paulatinamente. A escolha pela ausência de palavras que pudessem explicar conseqüências, motivações e futuro ofereceu plasticidade à conclusão da obra que, para algun,s pode soar positivo, enquanto para o expectador menos avisado pode ser confuso e inconclusivo. Mas é uma decisão que permeou toda a projeção e a direção de Vallée.

É um final cortante e chocante, tanto quanto a afirmação do “não amor” da mãe para Camille. Representando a força sufocante, devastadora e atraente que” Sharp Objects” deixa em seu público.

Embora não seja uma obra fácil de digerir, as mãos envolvidas no projeto conseguiram tecer a teia em Wind Gap como um organismo vivo e presente nas realidades menos esperadas. Um prato cheio para quem o processo de montar um quebra-cabeça é bem mais prazeroso que ver a peça pronta.