Três anos atrás, Sicario: Terra de Ninguém marcava a consagração de Denis Villeneuve no cinema americano. O canadense já havia mostrado seu talento com o drama familiar Os Suspeitos e o suspense psicológico O Homem Duplicado, mas foi com o surpreendente thriller policial sobre a guerra do narcotráfico na fronteira EUA e México que ele conquistou público e crítica. Sicario é uma produção que unia o cinema pipoca – uma narrativa de verniz dramático acessível ao público – com o toque autoral tecnicamente impecável do diretor. Foi o seu primeiro trabalho a ultrapassar a barreira dos 100 milhões de dólares, beliscando três indicações ao Oscar de 2016, uma delas de melhor trilha sonora para o compositor Jóhann Jóhannsson, falecido ano passado.

De lá para cá, Villeneuve abraçou a ficção-científica, realizando dois trabalhos extremamente elogiados. Um deles, Blade Runner 2049, ocupou tanto a vida do diretor, que ele acabou ficando de fora da continuação de Sicario, O Dia do Soldado, sequência que se passa três anos após os acontecimentos do filme original. Nela, o misterioso Alejandro Gillick (Benicio Del Toro) se alia de novo ao oficial da CIA, Matt Graver (Josh Brolin), para criar uma audaciosa guerra artificial entre os cartéis de droga mexicanos, pelo fato deles colaborarem com a entrada de Jihadistas no EUA. A missão ganha contornos morais, depois que a jovem filha de um chefão das drogas, Isabelle (Isabella Moner), é envolvida na sangrenta guerra política.

Diferente de grande parte das continuações do cinema americano, que diminuem a intensidade do original para torná-lo genérico, sem vida, no intuito de apenas reciclar elementos do anterior, O Dia do Soldado é uma grata surpresa. Revela ao público que esta inusitada nova franquia, tem fôlego para estabelecer a tensão e suspense dentro de um estofo dramático bem dimensionado, que mesmo um pouco distante da complexidade do anterior, é bem resolvido dentro da sua proposta. É uma continuação que utiliza suas engrenagens a seu favor, rumando por outros caminhos e respirando novo ares sob a nova direção.

O fato de manter parte da espinha dorsal do filme anterior, a dupla Brolin e Del Toro juntamente com o roteirista Taylor Sheridan, ajudam a manter a consistência do produto. O roteiro de O Dia do Soldado de Sheridan em nenhum momento fica na zona de conforto e mantém o talento do roteirista de atualizar personagens, contextos e situações para a guerra do narcotráfico e o terrorismo, sem perder a essência temática de Terra de Ninguém principalmente por ampliar a percepção pessimista e amoral de mundo.

A escolha de não trazer de volta a personagem Kate Mercer de Emily Blunt é acertada. Se no original ela era os olhos do espectador, a bussola moral do filme, na sequência com o mundo sicariano já pré-estabelecido, fica claro que na fronteira desta guerra política e de relações de poder, não há espaço para o senso ou um guia moral para contar a história para audiência. Temos uma realidade onde a escala de horror se dá por meio da violência, força e brutalidade, das contradições inerentes surgidas de interesses meramente políticos e não com finalidade de estabelecer a ordem ou a lei. Tanto que a frase de Matt de Brolin a sua superior da CIA (Catherine Keener) traduz o espirito cínico do filme: “Você não queria um Afeganistão. Aí está”.

Sheridan por sinal, permite que o filme se utilize de várias convenções e elementos de gêneros cinematográficos como a revisitação do faroeste – questões sempre presentes nos seus roteiros – através de uma fronteira sem lei semelhante ao velho oeste e pela transformação de Alejandro como o cowboy solitário, perto de sacrificar-se como um último ato heroico (e honroso) de salvar a civilização corrompida; além de estabelecer uma homenagem operística aos filmes de máfia, de gerações destruídas na sua formação de caráter pela cobiça dos seus progenitores ou pela falta de oportunidades sociais como é mostrado na trajetória dos personagens jovens do filme envolvidos com o cartel, Miguel Hernandez e Isabel Reyes. A cena final do ritual de transformação de um jovem em um futuro sicário é, sem dúvida, uma referência a O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola.

É interessante que a própria narrativa de Sicário 2 também entra nesta vibe,de abraçar as convenções com sua estrutura mosaica geopolítica que reverencia o filme síntese que mobilizou o cinema a promover o olhar crítico sobre as drogas e os seus cartéis: Traffic. Neste ponto, o filme apresenta um leque maior de subtramas, que amplia sua proposta de discussão e a deixa mais coesa. Infelizmente, Sheridan por mais que tenha boas intenções no seu mergulho profundo nas temáticas políticas e sociais, não entrega uma narrativa sólida neste aspecto quando comparada ao original.

O olhar crítico sobre o terrorismo apresentado no início do filme, é praticamente esquecido abruptamente durante sua projeção. A ambição do texto de fazer um grande relato de denúncia como proposto no primeiro ato, esbarra nesta falta de equilíbrio narrativo, com diversas conveniências de roteiro que cria uma teia de coincidências para traçar o destino de alguns personagens como Miguel e Alejandro. Ele praticamente sacrifica seus ótimos elementos dúbios em prol de um drama emocional-familiar centrado na relação entre Alejandro e Isabel que nunca se torna uma experiência rica para sua dramaturgia.

Por sua vez, a entrada do italiano Stefano Sollima na direção –conhecido por dirigir na Itália, episódios da série policial Gomorra – no lugar de Villeneuve, em momento algum, diminui a qualidade do longa como thriller de ação. Sollima tem total consciência do que têm em mãos, e como um diretor “prestador de serviços”, que assumiu um produto franqueado, entrega uma matéria-prima que não tem grandes pretensões artísticas, a não ser um entretenimento poderoso que funciona como um nocaute técnico na tensão e suspense, que logo na sua sequência inicial dentro de um supermercado,é filmada de forma bruta e visceral, preparando o terreno para o público sobre o tom cruelmente impactante do filme.

Essa eficiência técnica, é reforçada pela trilha de Hildur Guonadóttir que reaproveita os ótimos arranjos do finado Jóhann para impor intensamente a atmosfera niilista do trabalho, sempre acompanhada pela fotografia devastadora de Darius Wolski, que praticamente não oferece momentos de um mundo de cores quentes como acontecia no filme anterior, revelando que neste espaço de lobos, há apenas sombras e escuridão.

No geral, podemos dizer que Sicario: Dia do Soldado é auto suficiente para justificar sua existência de não ser outra continuação caça-níquel? Diria que sim, até porque Sollima e Sheridan o encorpam muito bem como uma tensão convincente e funcional, digna dos melhores thrillers de ação. E conta com o ótimo entrosamentode Del Toro e Brolin dominando por completo seus personagens, em parceria com a jovem Isabella Moner que entrega uma personagem feminina mais interessante que a Kate Mercer de Emily em Terra de Ninguém.

É claro que isso não esconde que esta sequência não é tão forte em criar momentos antológicos como o primeiro – não temos nenhuma cena de tirar o fôlego como a sequência de extração no México – até porque Sollima não é um diretor tão autoral ou um bom contador de histórias como Villeneuve. Mais o novo Sicário acerta em respeitar a linha do conto moral dentro de uma interessantíssima roupagem política-policial estabelecida pelo primeiro filme, revelando uma visão incômoda e atual para os problemas que assolam a América de Trump como a imigração, o terrorismo e as drogas. De certa forma, tem colhões para expandir o método e atmosfera do filme de Villeneuve na sua boa interação com o público e isso é cada vez mais raro de se encontrar no cinema americano.