Ao escrever sobre um filme que recentemente foi exibido (sem alardes) em Manaus – O Conto dos Contos, de Matteo Garrone -, pretendo antes fazer algumas observações pessoais sobre o cinema fantástico, formato no qual aquele filme se insere.

Pelo fato de o cinema nascer ainda no século 19 como proposta de entretenimento na ampliação do ilusionismo de Georges Méliès, tem-se a errônea ideia de que aquilo que é proporcionado pela trucagem se insere no âmbito do fantástico. Na fantasia, sim, e aqui temos uma primeira distinção com o cinema fantástico, também chamado por alguns como “realismo fantástico”. A base do que consideramos cinema fantástico está naquilo que é proporcionado pela criação de personagens e tramas capazes de revelar ao espectador um universo tal qual a realidade, mas visualmente diferente elevando-a a um patamar de mistério, incredulidade e sonho. Nesse sentido, está muito mais próximo do cinema surrealista, de horror e da ficção científica do que a da fantasia pura e simples. São exemplos desta compreensão filmes de Spike Jonze (Quero Ser John Malkovich; Ela – entrar na mente de outra pessoa; apaixonar-se pela voz de um sistema operacional), Luis Buñuel (Um Cão Andaluz; O Anjo Exterminador), Michel Gondry (A Espuma dos Dias; Sonhando Mesmo Acordado), Guillermo del Toro (O Labirinto do Fauno; Hellboy), Tim Burton (Edward Mãos de Tesoura; Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas) e David Lynch (Twin Peaks; A Estrada Perdida; Império dos Sonhos).

Os filmes por mim definidos como fantásticos encontram sustentação inclusive na literatura igualmente fantástica, na qual o relato alucinatório é um de seus mais significativos exemplos. Ele tem um ritmo narrativo próprio, em que o que nos é dito parece fazer sentido, mas logo em seguida surge um episódio surrealista ou uma situação absurda. São filmes que exigem bastante do espectador, não no sentido banal de “dar uma explicação” para o que está acontecendo, mas no sentido de aceitar as regras do jogo, de criar a atenção e a energia emocional necessárias à absorção da história. É Tzvetan Todorov, em seu livro “Introdução à Literatura Fantástica”, que melhor explica o significado de fantástico. Diz ele que dentro de nossa realidade regida por leis as ocorrências que não podem ser explicadas por essas leis incidem na incerteza de ser real ou imaginário. Assim, um acontecimento fantástico só ocorre quando há a dúvida se esse evento é real, explicado pela lógica, ou sobrenatural, ou seja, regido por outras leis que desconhecemos. Porém, a história não pode parecer de forma alegórica, pois, se o leitor ou espectador interpretar o sobrenatural como uma metáfora, num primeiro momento, ele perde o sentido fantástico. Deve haver uma pré-disposição do leitor para negar a alegoria e hesitar quanto à realidade do fato.

Distingo, portanto, filmes que se baseiam em histórias completamente fantasiosas, sem nenhum respaldo numa realidade próxima ou futura, para defini-los como filmes de fantasia. Incluo nesse conjunto praticamente todos os filmes baseados em aventuras das HQ, com personagens de superpoderes, algumas películas de terror (vampiros, lobisomens, zumbis, monstros de todas as espécies, psicopatas), baseadas em mitologias efetivas ou inventadas, contos de fadas e semelhantes. Na minha definição, incluo nessa “categoria” filmes como Transformers, as sagas Star Wars e Harry Potter, a série O Senhor dos Anéis, A História Sem Fim, O Feitiço de Áquila, Os Caça-Fantasmas, as séries Piratas do Caribe e X-Men, e por aí vai…  Sem dúvida, todos com extremo grau de realismo, graças à tecnologia digital. Sei também que muitos divergirão de minha posição e possivelmente arrolarão os filmes definidos por mim como fantásticos nessa mesma categoria. Mas…

Feitas estas digressões, entro em observações de O Conto dos Contos. O filme tem uma narrativa em três histórias livremente adaptadas do livro “Lo cunto de li cunti”, de Giambattista Basile, que se completam no desenvolvimento da trama geral. Os três contos de certa forma se unem graças a alguns temas transversais entre eles. O egoísmo de alguns personagens, o desejo de ser amado(a) por quem está próximo, a obsessão por um filho, a manutenção das aparências, são algumas dessas temáticas encontradas no filme.

A primeira história se passa num reino onde a Rainha procura engravidar a todo custo sem conseguir. Essa “necessidade” ganha dimensão psicológica, produzindo uma personagem com distúrbio obsessivo capaz de levar o Rei a encontrar possíveis soluções mirabolantes, ao mesmo tempo em que a relação se deteriora. O surgimento de uma figura lúgubre, misteriosa, propõe ao casal uma solução, mas com enormes riscos: o Rei terá que caçar um monstro marinho, matá-lo e retirar seu coração, fazê-lo cozinhar por uma virgem e ser ingerido pela Rainha. A caça ao monstro é apresentada num misto de fantasia e terror, com o Rei conseguindo o feito, mas pagando com a vida. Ao mesmo tempo vemos a Rainha pouco preocupada com sua morte, absorvida apenas com o coração do monstro e sua intenção de engravidar. Salma Hayek imprime à personagem um tom aparentemente frio e egocêntrico, que não encontra limites para tornar-se mãe mesmo que isto implique trilhar um caminho bizarro e produzir elevados custos para todos os envolvidos.

O ponto alto deste conto está no momento em que a Rainha come o coração do monstro. O contraste entre o tom branco do cenário e as vestes negras da Rainha, ao mesmo tempo em que a câmera se aproxima lentamente de seu rosto que está devorando o alimento de forma voraz e animalesca é repugnante, mas fascinante. Boca e mãos recheadas de sangue denotam seu estado psicológico obsessivo e desvairado. É no funeral do Rei que acompanhamos a chegada dos governantes dos outros dois reinos onde transcorrem as duas outras histórias, interpretados por Toby Jones e Vincent Cassel. Dezesseis anos depois, Elias, filho da Rainha, mantém laços de amizade com Jonah, filho da virgem que preparou o coração do monstro, e para o qual procura eliminá-lo por ser a única pessoa com quem Elias efetivamente tem proximidade. Importante frisar que ambas as personagens são interpretadas pelos irmãos gêmeos Jonah e Christian Lees, o que complementa ainda mais a vertente fantástica. O diretor Garrone mostra essa amizade com um misto de realismo e fantasia, na medida em que é uma árvore que permite a Elias saber informações sobre Jonah.

A relação problemática entre pais e filhos também é mostrada no segundo conto. O Rei interpretado por Toby Jones é uma figura patética que parece não se preocupar com a filha Violet. Esta, como a maioria das adolescentes, vive o momento de romantismo imaginando casar-se e viver sua própria história. Entretanto, o Rei só tem momentos de afetividade para seu bicho de estimação: uma pulga que alimenta, treina e educa (pasmem!) e que acaba se transformando em um grotesco e gigantesco ser. Vencido pela insistência da filha, o Rei anuncia um concurso público aberto a todos os habitantes para selecionar o “príncipe encantado” de Violet. Aquele que adivinhasse a qual animal pertencia à pele exposta obteria o direito de casar com a jovem. O único a adivinhar é um ogro, uma figura deformada, rude e agressiva, que a jovem procura desde logo livrar-se dele a todo custo. É importante frisar que Matteo Garrone subverte completamente os contos de fadas que são constantemente adaptados de forma edulcorada em diversos filmes da Disney e Dreamworks, quando a princesa se casa com o “príncipe” e aqui aplica o grotesco e o mau gosto de propósito na personagem do ogro, longe de ser o simpático Shrek.

O terceiro conto apresenta um reino governado por um indivíduo libertino, mulherengo, que não coloca limites para seus desejos. Aliás, uma personagem praticamente escrita para Vincent Cassel. Um dia, ao escutar um lindo canto, encanta-se. Julgando ser a bela voz de uma jovem do reino, passa insistentemente a cortejá-la na porta de sua casa, mas sem vê-la e sem sucesso. Na verdade, a voz é de uma mulher velha, de pele enrugada e cabelos brancos, que vive com a irmã trancada em casa. Ambas, portanto, não correspondem aos ideais de beleza pretendidos pelo Rei. Ao mesmo tempo em que ficam embevecidas pelo cortejo, apavoram-se com a ideia de transar com o Rei, até porque será um desfeito. Como reunir sexo com aparência? Esse desafio leva Dora, a da bela voz, a procurar uma forma de alterar sua fisionomia para que o Rei não perceba a idade. Exige, inclusive, que o encontro se dê à noite no palácio e sem luzes, algo que não se sustenta ao amanhecer e ela é defenestrada pelo Rei. Por sorte, ou azar, Dora permanece com vida, sendo temporária e magicamente transformada numa jovem (interpretada por Stacy Martin, de Ninfomaníaca) capaz de atrair e cativar o rei galanteador. E aqui Garrone parece satirizar a obsessão que as pessoas têm pelas aparências, uma temática completamente contemporânea com as abusivas cirurgias plásticas, tratamentos de pele e outras formas de conservação da juventude.

Por fim, é necessário falar do realizador do filme. A trajetória precoce de Matteo Garrone no cinema é propositalmente descontínua. Em 12 anos de produções percorreu diversos gêneros aparentemente tão díspares (drama, comédia, romance, thriller) que seria impossível prever seu reconhecimento artístico. Este veio com Gomorra em 2008, transportando o espectador para dentro da máfia italiana (a Camorra), com extremo realismo e sem o glamour dos filmes de gangsters americanos. Continuou com Reality, uma febre dos tempos atuais que enfocou com o tom picaresco italiano àqueles que buscam a fama rápida e facilmente. Agora O Conto dos Contos indica que Garrone não tem problemas em desafiar novos rumos a sua carreira profissional, deixando transparecer sua necessidade de enfrentar novos desafios e expor sua versatilidade. E seu desafio foi trabalhar uma temática ambiciosa, envolvente e fantástica, nos transportando para um mundo místico e medieval mesclado com algum realismo e que sugere levemente a aparência de filmes de seu outro conterrâneo, Pasolini, quando este trabalhou a Trilogia da Vida. Este é seu primeiro longa-metragem em inglês, com produção sofisticada, atores renomados e histórias pontuadas de personagens e tramas que ficam na memória do espectador. O filme, de conteúdo fantástico, constitui uma obra cinematográfica visualmente poderosa, divertida e excitante. Fica a sugestão para que o assistam e se deliciem.