Personagens… No ato de se contar histórias, tudo se resume a eles, não é mesmo? No cinema, isso é perceptível principalmente quando falamos de franquias, trilogias, narrativas contínuas. Voltamos para ver novos capítulos das nossas sagas favoritas nem tanto para ver a nova história, mas principalmente para rever os personagens que, se foram bem estabelecidos e bem interpretados, acabam se tornando nossos amigos, tão reais aos nossos olhos quanto as pessoas que encontramos na rua, às vezes até mais.

Esse certamente foi o caso com a saga Star Trek, que em 2016 comemora 50 anos de existência e aventuras pelo espaço. Um dos motivos que fez da primeira encarnação de Star Trek – aquela com os atores William Shatner e Leonard Nimoy interpretando o Capitão Kirk e o Senhor Spock – tão querida, foi o fato dos personagens parecerem humanos, terem características fortes e problemas. E eles também envelheceram diante dos nossos olhos, o que os tornou ainda mais humanos. Claro, a franquia sempre apresentou batalhas no espaço, dilemas filosóficos e tramas fantásticas, mas as suas maiores forças, acima de tudo, foram os seus personagens e a humanidade presente neles, mesmo quando algumas dessas figuras não eram tecnicamente humanas.

Reconhecer isso também é a maior força do mais novo capítulo da franquia, Star Trek: Sem Fronteiras, uma aventura espacial com ação, cenas de destruição, humor e muitos efeitos visuais, mas que consiste, na maior parte da sua duração, de pessoas sendo elas mesmas e interagindo umas com as outras. Afinal, quando Sem Fronteiras começa, vemos personagens cansados após a sua longa missão de cinco anos no espaço, e em crise. Kirk (Chris Pine) não sabe mais ao certo se quer continuar como Capitão da nave Enterprise; o romance entre Uhura (Zoë Saldana) e Spock (Zachary Quinto) está abalado; e até mesmo o oficial Vulcano da nave começa a questionar o seu papel. Mas uma missão aparentemente de rotina vai deixá-los sem nave, isolados e separados uns dos outros, e forçados a redefinirem as suas dinâmicas interpessoais para derrotar uma força empenhada em destruir a Federação de Planetas.

Quando J. J. Abrams ressuscitou a marca Star Trek com seu filme em 2009, ele o fez tornando-a mais “palatável” ao gosto do espectador médio do cinema atual, com uma produção mais grandiosa e ênfase na ação. Abrams também escalou um carismático elenco que conseguiu a proeza de dar vida nova à criação do produtor de TV Gene Roddenberry. Em Sem Fronteiras, o terceiro dessa nova fase da franquia, Abrams saiu e Justin Lin, da franquia Velozes e Furiosos, assumiu. Esperava-se que Lin fosse aumentar ainda mais a cota de ação, mas ao invés disso ele aumentou a ênfase nos relacionamentos entre os personagens, e graças à escalação de elenco inspirada de três filmes atrás, tudo funciona.

Separados, a tripulação da Enterprise passa a funcionar dentro de núcleos dentro da história. Kirk (um Pine brilhante, enfim) e Chekov (Anton Yelchin, cuja atuação carismática com tempo maior de tela só torna mais trágico o seu falecimento recente) vivem uma parte da aventura. Scotty (Simon Pegg, também um dos autores do roteiro) conhece Jaylah (Sofia Boutella, cheia de energia) e a recruta para a missão. E Spock e McCoy (Karl Urban) ganham um proveitoso e merecido tempo para compartilhar a tela – poderiam fazer um longa só com os dois.

O meio do filme, ambientado num planeta, traz surpresas e um clima bastante próximo das velhas aventuras da Série Clássica – é quando Lin, justamente o diretor “Veloz”, desacelera e simplesmente nos faz passar um tempo com aqueles personagens. Talvez não seja a forma normal de se conduzir um blockbuster em nossa época, mas é fiel ao espírito Trek e às características que tornaram a franquia tão especial. De qualquer forma, quando o filme retoma a ação, o faz de maneira intensa e criativa – o uso da canção Sabotage dos Beastie Boys numa cena chave não traz sorrisos apenas a Kirk…

O roteiro alia humor, boas sacadas e referencias a várias encarnações de Star Trek – Kirk reclamando que rasgou a camisa de novo e que sente uma rotina meio “episódica” no início do filme são bem engraçadas, e até elementos da ainda pouco valorizada série Enterprise (2001-2005) são usados no enredo. E pelo menos um momento de homenagem a Leonard Nimoy deve trazer lágrimas aos olhos dos velhos fãs. Sem Fronteiras definitivamente tem um pouco mais de jeito de Star Trek que os anteriores de Abrams, mas ainda assim é uma experiência capaz de ser apreciada até por quem nunca viu nada da franquia antes.

Porque, na verdade, é um filme sobre um grupo de pessoas. Claro, Lin estabelece tomadas impressionantes, como as do interior da estação Yorktown – cujo nome também é uma referencia – e cria via computação gráfica pelo menos um plano muito inspirado, aquele na qual a câmera presa ao casco acompanha o lançamento da Enterprise da estação. Onde Sem Fronteiras diminui um pouco é no seu vilão: Idris Elba, aparentemente, buscou inspiração no cultuado Inimigo Meu (1985) para compor o personagem Krall, mas embora ele seja até bem fundamentado e o ator seja muito bom, ele não consegue transcender completamente o tipo de vilão genérico que quer destruir o mundo.

Porém, de certa forma é até apropriado que o vilão não seja tão bom quanto poderia ser porque o mais importante são os heróis e o que eles representam. Num mundo onde vemos as pessoas cada vez mais divididas, é bom ver um filme no qual os heróis têm sim as suas diferenças, mas as vencem em prol de algo maior, e se mostram mais fortes juntos do que separados. Esse sempre foi um traço fundamental da saga: muitas vezes a equipe da Enterprise (em suas várias encarnações) triunfa não porque tem melhores armamentos ou a nave mais avançada, mas porque funcionam como equipe. Apesar de discutirem entre si e às vezes até brigarem. Como nós.

O resultado é um filme que diverte, faz rir e empolga, mas que também promove um excepcional reencontro com alguns dos mais queridos personagens da cultura pop neste último meio século, relembrando-nos das razões pelas quais eles se tornaram tão queridos. No meu texto sobre os 50 anos da marca, estabeleci a esperança do futuro de Star Trek como a principal razão para a sua sobrevivência. Não estava errado, mas estava incompleto: Star Trek também sobreviveu porque, geralmente, é muito divertido e bom estar a bordo da Enterprise e passar um tempo com a sua tripulação. Bom ver que, em Star Trek: Sem Fronteiras, isso ainda é verdade. E pelo visto, também é ótimo comemorar aniversário junto com eles.