No curta-metragem paranaense Tentei, Lais Melo tem o seu ponto mais forte no encontro entre a potência da temática e a sutileza com que a diretora expõe (ou oculta) as violências sofridas pela protagonista. Por violência, entenda-se a física, mas também a psicológica, e o filme adentra com mais intensidade nesta última para expor uma situação infelizmente muito comum às mulheres no Brasil: o trauma não apenas de sofrer agressões do companheiro, mas de receber um tratamento não humanizado quando se faz a denúncia do crime.

Talvez propositadamente, o início do curta não empolga. Temos Glória (Patricia Saravy), inerte na cama, despertando lentamente para o que parece ser um cotidiano banal. Salvo o nervosismo que escapole pontualmente na expressão corporal da personagem, bem trabalhada por Saravy, nada impressiona à primeira vista, e podemos mesmo nos questionarmos sobre o ritmo do filme nessa sequência, a qual caberia melhor em um longa-metragem, uma vez que a demora na exposição do conflito desafia o interesse do espectador.

Além do que se vê

A aparente monotonia é quebrada quando o roteiro, também de Melo, finalmente permite que entendamos o motivo da apreensão de Glória: ela parte para realizar uma denúncia contra o companheiro de mais de 15 anos por agressão física. Agressão essa que nós, espectadores, não vemos, da mesma maneira que comumente não a vemos em toda a sua brutalidade no cotidiano de um país em que o 180 (número da Central de Atendimento à Mulher) recebeu mais de 79 mil denúncias desse tipo de crime apenas no primeiro trimestre de 2018. Dados como esse, divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos (MDH), reforçam a importância da abordagem trazida por Tentei.

A jogada de Melo ao esconder de nosso olhar a violência contra Glória resulta numa solução simples e, ao mesmo tempo, incitadora de reflexão. A partir daí, fica mais claro como essa foi uma escolha consciente da diretora, e que passa longe de uma opção covarde ou que ameniza o assunto tratado pelo filme. Tentei se propõe revolver nesse espaço para além do explícito, no qual gritos, socos e brigas não têm espaço de expressão, mas ainda assim compreendemos a crueldade desses acontecimentos a partir do que eles causam.

As elipses que a direção de Melo traz ao curta é o que nos prende a ele. Age como um quebra-cabeça que o espectador monta aos poucos na fruição do filme. Começamos, assim, a dar significado à escolha da fotografia de cores opacas, à atuação comedida e sutil de Saravy – o que rende uma empatia crescente para com a personagem –, e a outro ponto igualmente impactante: o momento do atendimento à vítima. Aí se aponta para o ápice da propositura de Tentei.

Melo expressa a força maior de seu curta no terço final, num roteiro e direção de tom crescente após o começo de pontas mais soltas. De quebra, expõe uma mazela relatada por muitas mulheres que procuram a justiça, tudo isso a partir de uma construção perspicaz, posto que o atendente da denúncia de Glória não é apresentado na narrativa como alguém claramente maligno, insensível ou desonesto.

Microagressões e a necessidade de falarmos sobre

O diálogo – quase um monólogo –dessa cena poderia ser usado quando se quer explicar a alguém o conceito de microagressão. Para os menos afeitos ao termo, trata-se daquele tipo de recriminação sutil, realizada a partir de pequenas atitudes que, apesar de aparentemente simplória e/ou inconsciente, é capaz de machucar profundamente o outro.

Gloria luta contra o silêncio que a acompanhou há anos ao tentar dar conta de falar sobre a violência da qual foi vítima, ao passo que o atendente relativiza a situação, ainda que com palavras e tom de voz aprazíveis em sua superfície. Assim, começamos a observar o peso de colocações como “Seu marido a forçou a ter relações sexuais? Você precisa detalhar melhor, porque é normal um casal ter relações” ou “Por que só denunciou agora?”.

Esses e outros pequenos detalhes que culpabilizam a vítima são postos, um a um, em cena, com um cuidado especial para não tornar o tom da sequência farsesco ou desrespeitoso no ponto de vista lançado pela realizadora. Por sua vez, a dedicação de Saravy ao papel dá conta de incitar discussão sobre o quanto as tais microagressões ferem a dignidade da mulher em situação já tão delicada e desestimulam as denúncias.

Para além do tratamento da temática, a montagem, feita também por Melo, merece uma atenção em Tentei. A estabilidade dos planos e duração mais longa das tomadas, amplificadas pela (aparente) banalidade do primeiro terço do filme e (aparente) sensação de segurança na passagem de Glória para realizar a denúncia no segundo terço contrastam com a parte final. Aí, a câmera na mão chacoalha, parece a um passo de cair e levar nosso olhar junto para o chão, torna quase difícil distinguirmos as imagens na tela enquanto Glória corre para casa. A contenção da personagem vai abaixo e ela chora e grita, com a montagem do último terço englobando os sentimentos da personagem em soluções simples, porém, eficazes para fins narrativos. Toca-nos e faz pensar, em resumo.

Eleito o Melhor Curta pelo Júri Oficial do Festival de Brasília, Tentei abarca um recorte complexo e urgente enquanto discussão social hoje. O fato de o filme ter, em seus bastidores, funções exercidas por mulheres – produção, fotografia e som direto, por exemplo – torna-o ainda mais emblemático no sentido de se projetar para o extracampo e simbolizar mudanças positivas para a equidade de gênero na sociedade, outro ponto bonito de sua trajetória.