Em janeiro de 1969, os Beatles se reuniram para gravar uma apresentação que seria televisionada e também para trabalhar em músicas para esse show que virariam um novo álbum. Todo esse processo foi acompanhado pelas câmeras do cineasta Michael Lindsay-Hogg, com intenção de produzir um documentário sobre a banda. Os Beatles viviam um momento de encruzilhada na carreira: não faziam mais shows ao vivo; estavam na sua fase “lisérgica”, por assim dizer; e seu empresário Brian Epstein, figura importantíssima na trajetória da banda, havia morrido prematuramente alguns anos antes, deixando uma ausência ainda sentida pelos seus membros.

De fato havia um clima estranho no ar, um certo cansaço, entre John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. E a crise da banda acabou sendo exibida no documentário Deixa Estar: Let It Be (1970), lançado com o mesmo título daquele que viria a ser o derradeiro disco dos Beatles. Acontece que Lindsay-Hogg gravou cerca de 60 horas de material que nunca tinha sido visto antes… até agora.

The Beatles: Get Back é uma experiência curiosa. A minissérie documental do cineasta Peter Jackson, lançada no Disney +, é algo, a seu modo, tão épico quanto a sua bem-sucedida e oscarizada trilogia O Senhor dos Anéis, documentando um momento-chave da existência do maior fenômeno da história da música. Em muitos trechos, o documentário é fascinante. Mas o lado fã do diretor parece ter tomado a melhor sobre ele, porque Get Back também parece, em alguns momentos, quase interminável – eu não concordo, mas tem gente que diz o mesmo de O Senhor dos Anéis…

BASTIDORES RAROS

Primeiro, sobre a parte fascinante. Sem dúvida, é impressionante o trabalho de remasterização das imagens e tratamento de áudio da época.  Não é à toa que Get Back demorou alguns anos para ficar pronto e a equipe de Jackson até utilizou a tecnologia usada no documentário anterior do cineasta, Eles Não Envelhecerão (2018), que contava com a restauração de imagens da Primeira Guerra Mundial.

O resultado em Get Back é impressionante: na era da alta definição e do streaming, os Beatles e o contexto do fim dos anos 1960 voltam à vida de maneira impressionante. E para respeitar esse contexto, a Disney até permitiu que fossem incluídos na montagem final alguns palavrões e as várias cenas de pessoas fumando. A imagem e o som são tão perfeitos que parecem ter sido gravados ontem.

E esse acesso à banda que as câmeras de Lindsay-Hogg proporcionaram é capaz de deixar qualquer beatlemaníaco ou fã de música sem palavras. Ao longo das três partes do documentário, vemos como câmeras bem posicionadas – e num momento-chave, até um microfone escondido – serviram para documentar o processo criativo e as brigas dentro da banda. Esses são os melhores momentos de Get Back: é quando vemos os Beatles ensaiando no estúdio xexelento em Twickenham, McCartney criando a canção Get Back, Harrison dizendo que compôs I Me Mine inspirado por um filme de ficção-cientifica que viu na noite anterior.

Fica claro também, graças a esse acesso sem precedentes, que o fim da banda era questão de tempo. O próprio McCartney diz nesses ensaios que “o divórcio está próximo”, ao que Lennon retruca brincando “e quem vai ficar com as crianças?”. Na atmosfera estressante de Twickenham, com o prazo batendo à porta, vemos o controlador McCartney querendo as coisas do seu jeito, Harrison ficando de saco cheio disso – o guitarrista chega a abandonar a banda por uns dias – e Lennon meio desinteressado, como se não ligasse mais para a banda.

Nesse sentido, quem se dá bem é Yoko Ono, eternamente vista como a causa da separação dos Beatles. Na verdade, eles já estavam às turras antes dela aparecer. Yoko aparece frequentemente em Get Back, sentada ao lado de Lennon nos ensaios e em uma cena meio embaraçosa, os dois fazem uma jam de zoeira onde ela grita e geme…

Quando os ensaios mudam para os estúdios da Apple Corps., o clima fica mais leve e é aí que Peter Jackson meio que reescreve o fim dos Beatles, mostrando com detalhes em Get Back que, apesar do cansaço natural, do stress da fama e do que viria depois, eles se divertiram muito nesse período, ensaiando e compondo.  É um retrato mais positivo, e que com certeza agrada mais aos fãs, do que o filme Let It Be, e só demorou uns 40 anos para ser visto…

FANSERVICE TOTAL

Porém Jackson, junto com seu montador Jabel Olsson, intercala esses momentos fascinantes – incluindo aí o final, com o icônico concerto no telhado do Apple Corps. que se tornou a última apresentação pública da banda, e todo o rebuliço que causou – com outros que, sinceramente, são enfadonhos.

É fascinante ver como a linguiça é feita por um tempo, mas não por quase oito horas, a duração total da minissérie – uma a menos que as versões de cinema de O Senhor dos Anéis. Tem material ali que poderia ter ficado no chão da sala de edição – o miolo da minissérie são cenas intermináveis da banda, mais descontraída e à vontade, tocando e ensaiando. Só Don’t Let Me Down deve ser tocada umas 30 vezes ao longo das três partes.

Para os fãs de carteirinha, é um prato cheio e o evento mais imperdível sobre a banda lançado nos últimos tempos. Eles com certeza nem sentirão o tempo passar, e muitos até gostariam de ver todas as 60 e poucas horas que foram gravadas. Já o restante do público deve checar o relógio ou o celular em alguns trechos.

Em nome da honestidade, é bom deixar claro que não sou assim tão fã dos Beatles. Mas reconheço que, de certo modo, não sou exatamente o público-alvo deste projeto. The Beatles: Get Back é destinado mesmo aos já convertidos. Não deixa de ser um produto da nossa época, um documentário com altas doses de fanservice.

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