Atenção: O texto a seguir possui spoilers do livro “O conto da aia” e da série televisiva “The Handmaid’s Tale”.

Imagine um mundo em que todos seus direitos são retirados, você perde sua família, emprego e o dinheiro de sua conta bancária. Imagine um mundo onde após tudo isso você deve seguir uma outra religião, sem escolher a roupa que veste ou até mesmo com quem faz sexo. É por meio desta realidade distópica que The Handmaid’s Tale tornou algo inconcebível parecer tão provável aos olhos de seus espectadores.

A série pertencente ao serviço de streaming Hulu ainda é desconhecida por muitas pessoas limitadas pela televisão paga, afinal a série apenas foi transmitida, até então, em seu serviço original (o qual não é nem a primeira ou segunda opção de assinatura para a maioria). Mas não foi apenas para seu streaming que The Handmaid’s Tale chamou atenção, o seriado também conseguiu ressaltar diversos debates que estão reverberando cada vez mais no cenário político e social dos Estados Unidos, assim como no restante do mundo.

Baseada no livro “O conto da aia”, da canadense Margaret Atwood, a série apresenta o mundo em colapso no qual a taxa de natalidade diminuiu drasticamente, ocasionando grandes mudanças para a sociedade. Enquanto os homens se mantém como aqueles que ditam as regras e assumem diferentes tipos de trabalho, de motoristas a Comandantes (figuras masculinas influentes), as mulheres são separadas em diferentes denominações conforme sua capacidade de procriar.

O pensamento utilizado porém, não se apresenta de forma tão simples. As mulheres se dividem em classes distintas: as Marthas são aquelas que não podem ter filhos e trabalham como empregadas domésticas; as Esposas são mulheres dos comandantes e assumem o papel de cuidar da casa e garantir o conforto de seus maridos; as Tias fazem parte do centro político, doutrinando grupos femininos. Por fim, as Aias são o único grupo de mulheres que podem ter filhos, porém sua existência não vai além disso, estas são designadas ao lar de casais que não possuem crianças para dar-lhes tal “benção”.

Destaques

Visualmente esta segmentação é um potencial importante para a série. Dentre o cenário cinza e desbotado de uma distopia, com a presença dos homens vestindo preto, as mulheres se dividem utilizando cores específicas. As aias usam apenas a cor vermelha, criando um impacto visual imediato ao propor em sua mise en scène uma ou várias personagens, destacando cada pequeno detalhe de suas ações. A cor também é explorada em contraste com o chapéu branco sem o qual a aia não pode sair de casa, o design desta peça reforça sua posição ao cobrir as partes laterais do rosto, criando uma limitação para observar apenas aquilo que lhes é permitido.

Estas significações representadas por meio de seus aspectos visuais acrescentam às informações retratadas em outros momentos da série. As aias são treinadas e designadas para conceber o filho de um casal, após este serviço, são mandadas para outra casa, repetindo seu propósito novamente. Esta dinâmica não inclui privilégios como ler, escrever ou conversar sobre questões políticas, porém permite agressão física e verbal indiscriminada, podendo ocasionar também mutilação.

O outro grupo de mulheres que usa uma cor específica, são as esposas, que são apresentadas por meio do turquesa escuro, atribuindo menos urgência e mais austeridade para si. Além de seus figurinos, a maioria dos cenários presente na casa complementa o padrão exercido por estas com tons de verde. Sua principal função é garantir o perfeito funcionamento de sua casa e criar o seu filho que será concebido por meio de outra mulher.

As Marthas assumem a cor cinza, se fundindo ao contexto e passando quase que despercebidas dentre os maiores acontecimentos. A roupa utilizada pelas Tias é representada pela cor marrom, lembrando sua ligação com uniformes militares, a própria autora do livro diz que esta escolha foi inspirada nas vestimentas do governo alemão nazista, equiparando sua função de treinar e controlar as aias ao regime totalitário.

A partir desta separação, cada grupo deve desempenhar seu papel. É claro que para as mulheres férteis realizarem seu objetivo precisam antes executar o ato sexual. Assim como todas outras ações perturbadoras apresentadas, este é justificado por uma passagem bíblica, desta forma durante o sexo entre o comandante e a aia, a esposa deve estar junto. Não é preciso dizer que a situação toda soa de forma desconfortável certo? Cabe então a fotografia representar esses momentos e sua importância na trama.

A câmera desfocada do comandante; o close na expressão de sua esposa; o rosto da aia filmado em plongée. Três diferentes perspectivas na mesma cena são indicadas por sua fotografia, a ausência de diálogos evidencia esta interação velada entre seus envolvidos. Tal sequência, permite também observar a reação dos personagem e posteriormente, dialogam com as informações que serão reveladas acerca de cada um.

Em um mundo onde as pessoas são privadas de seus desejos, a filmagem  claustrofóbica presente em toda série evidencia suas reais vontades. O close nos olhos, boca e mãos se repete com grande frequência, demonstrando a reação dos personagens por meio de pequenos gestos reprimidos. Assim como a presença das mulheres sempre filmadas nos cantos da tela, nunca em seu centro, mesmo aquelas que assumem maior autoridade, as esposas, se encontram retratadas desta forma.

Anti-heroína e protagonista

Essas situações são vistas a partir do ponto de vista de Offred (Elisabeth Moss), uma aia recém-chegada na casa do comandante Fred Waterford (Joseph Fiennes) e de sua esposa, Serena Joy Waterford (Yvonne Strahovski). A relação de semelhança entre os nomes não é feita ao acaso, cada aia recebe o nome de seu comandante com o “of” na frente, se tornando então “Of Fred” = do Fred, pertencente ao Fred. Sendo assim, mais um exemplo de descaracterização de suas personalidades.

Acompanhamos então a trajetória de Offred por meio de sua rotina, contato com outras aias e principalmente, por meio de seus pensamentos, os quais além de lembrar nossa personagem de sua verdadeira identidade, representam seus desejos. Em meio a estes acontecimentos, avistamos flashbacks sobre a vida Offred antes da imposição do novo regime governamental e compreendemos que assim como qualquer ser humano, ela não é perfeita e apresenta um caráter fragmentado (vide o início de sua relação com o marido).

Estes comparativos são aguçados em diversos momentos que nos fazem questionar onde estaria a importante sororidade feminina. Afinal, nenhuma mulher presente se mostra satisfeita com sua atual posição, até mesmo para a esposa Serena, que ajudou a criar as regras vigentes, o país se mostra um lugar amargo e infeliz.

Então se nenhuma mulher está feliz, deveria haver uma mudança certo? Sim, esta construção ocorre ao longo de seus dez episódios. No início, a série apresenta um discurso que reforça a competição entre mulheres, resultado da conjuntura imposta que influencia em suas escolha e na consciência coletiva dos diferentes grupos. Esta mudança mostra seus indícios na interação entre Offred e Ofglean (Alexis Bledel), que em uma desconfiança mútua, descobrem defender as mesmas opiniões.

Méritos e relevância 

O grande destaque entre o público e crítica não foi exagero, na série, as próprias atuações de seu elenco ganham notoriedade a medida em que conhecemos os personagens mais profundamente. Importante dar os méritos a Alexis Bledel que entrega uma grande atuação com um papel que não parecia ser capaz de tanto. As diferentes facetas apresentadas por Offred também são reforçadas no restante dos personagens, ninguém é totalmente bom ou totalmente ruim, as circunstâncias presentes mudaram diferentes aspectos de cada um.

A série consegue explorar o desmembramento de temas relacionados ao meio político, trabalhando minunciosamente com o roteiro que lhe é proposto. A sociedade passa a ser vista por uma ótica atípica, que potencializa fatores adversos presentes em qualquer lugar como a prostituição e punição para homossexualidade. Outra crítica engenhosa é a relação entre Estados Unidos e Canadá, realizando uma inversão na qual, o real sonho americano é fugir para o país vizinho. Mesmo escrito em 1985, o livro de Atwood já inseria tais questões nesta história, e 32 anos depois, a série se apropria desta presença com confiança e sutileza, sem reforçar discursos pré-fabricados.

Ostentando o feito de realizar sua primeira temporada com desempenho tão favorável, The Handmaid’s Tale garante eminente expectativa para seu próximo ano. O futuro da série é igualmente questionado devido a ausência do livro para guiá-lo, o qual foi retratado integralmente no primeiro momento. Tal questão será acompanhada em abril de 2018, assim como o futuro incerto de Offred e das outras aias, o spoiler, entretanto, já foi anunciado: “Nunca deveriam ter nos dado uniformes se não queriam que fôssemos um exército”.