The Keepers é uma série sobre mulheres. A nova minissérie documental da Netflix tem como ponto de partida o enigma do que aconteceu com uma delas. Em novembro de 1969, a irmã Cathy Cesnik, residente de Baltimore, Maryland, EUA, saiu do seu apartamento para fazer compras e desapareceu. Quase um mês depois, seu corpo foi encontrado num terreno distante. A investigação policial nunca descobriu quem a matou, ou por que. Ela tinha 26 anos.

O capítulo inicial da minissérie, de sete episódios, estabelece as circunstâncias do crime. A irmã Cesnik também era professora do colégio católico Arcebispo Keough, e pouco antes de desaparecer, ficou ciente dos abusos sexuais de algumas alunas do colégio cometidos por uma dupla de padres. E também, logo de cara, somos apresentados às duas investigadoras e ex-alunas do colégio e da freira, que criaram uma página de Facebook para compartilhar dados sobre o caso e hoje mantém ativa a luta por justiça pela irmã Cesnik.

Seguindo o caminho estabelecido por tantos documentários recentes sobre crimes reais – vale lembrar que a própria Netflix alcançou bastante repercussão com outro projeto semelhante, Making a Murderer, em 2016 – o diretor de The Keepers, Ryan White, usa a investigação das duas senhoras como ponto de partida para criar um painel amplo e revelador das atrocidades cometidas no colégio e das suas repercussões. É impressionante ouvir alguns depoimentos e perceber a gravidade e a sordidez dos atos, especialmente os do padre Joseph Maskell, “conselheiro espiritual” do colégio. O padre, além de abusar de dezenas de alunas, chegava a oferecê-las a seus amigos, muitos deles policiais.

Inevitavelmente, The Keepers desperta lembranças do recente vencedor do Oscar Spotlight: Segredos Revelados (2015), que abordava a investigação jornalística sobre os casos de abuso sexual perpetrados por membros da Igreja Católica em Boston. Porém, o que White e sua equipe fazem em The Keepers é realmente dar voz às vítimas. Por vários momentos durante os episódios, o diretor e sua câmera apenas deixam as mulheres falarem. Jean Wehner, uma das mulheres que tentou – sem sucesso – instaurar um processo contra a Igreja de Baltimore nos anos 1990, é a que mais impressiona, pela força. Mas mesmo ela desaba em alguns momentos, com impacto sobre o espectador.

Durante os depoimentos, White põe na tela imagens ilustrativas fortes e precisas, num preto-e-branco granulado, e pelo menos uma dessas imagens – a do manequim vestido com um hábito de freira num dos episódios – deve ficar na mente de qualquer espectador por um bom tempo. O trabalho de pesquisa do documentário é também minucioso, o que torna a série bem envolvente. Não há momentos desinteressantes e a montagem dos episódios também é envolvente: cada um sempre termina com uma espécie de “gancho” para o próximo, como em qualquer série ficcional de hoje, e dependendo da disponibilidade de tempo do espectador, The Keepers é facilmente “maratonável”.

A série é tão envolvente que alguns problemas pontuais até podem passar despercebidos. Por exemplo, o diretor coloca uma investigação sobre o amigo mais próximo da irmã Cesnik no penúltimo episódio, meio sem propósito, e esses minutos acabam se configurando numa espécie de tempo perdido. Além disso, o assassinato de Joyce Malecki, ocorrido alguns dias depois do da irmã e abordado no primeiro episódio, é ignorado por vários capítulos, apenas para ser retomado de maneira meio apressada num dos últimos segmentos.

Porém, esses problemas não atrapalham muito a experiência da série. A força de vários momentos, e da própria história, acabam superando esses deslizes. O episódio final é um verdadeiro soco no estômago, quando percebemos que as atitudes da Igreja a respeito do caso foram tão ruins, talvez até piores, do que os abusos. É quando aparece a primeira vítima do Padre Maskell – de maneira até surpreendente, um homem – e fica clara a responsabilidade da Igreja: a instituição poderia ter evitado todos os crimes e sofrimentos causados por ele, mas nada fez. The Keepers é a história de mulheres corajosas e fortes – e de alguns poucos homens bons – que trabalham para evitar que outras mulheres, abusadas e assassinadas, sejam esquecidas. Termina sendo também uma série sobre memórias afetadas pelo tempo, e sobre a impossibilidade de conhecermos algo com absoluta certeza. É uma história triste. Mas ao final dos sete episódios, são as mulheres, seus rostos e histórias, que ficam na memória do espectador.