O cinema australiano tem uma vasta tradição em filmes malucos e incomuns. Só assim para definir apropriadamente a energia única que várias produções do país parecem ter. A Austrália tem um rico cinema de gênero, com obras de ação e violência filmadas em meio ao deserto e às paisagens do interior do país. Quando se fala em Austrália, cinema, deserto e violência, a primeira coisa que vem à mente é Mad Max, a trilogia de sucesso mundial que praticamente se tornou sinônimo de “filme apocalíptico”.

The Rover: A Caçada também é apocalítico – afinal, se inicia com um letreiro dizendo que a história se passa numa Austrália “dez anos depois do colapso”. O que exatamente foi esse colapso, o filme não explica, mas pode ter sido um desastre econômico. Aparentemente, The Rover se passa numa época entre o primeiro e o segundo Mad Max, pois ainda se percebem nele os últimos vestígios de um mundo civilizado. Ainda existe dinheiro e comércio, mas todos só querem dólares americanos. Ainda existe gasolina e carros percorrem a paisagem desértica. Ainda se vê uma estranha presença militar. E, ao que parece, os asiáticos dominaram a Austrália, pois se ouve musica japonesa e pessoas de fenótipo oriental são frequentemente vistos ao longo da história. Em dado momento vemos também um gigantesco trem, carregando vagões com ideogramas orientais.

É em meio a esse cenário que se movimenta o estranho Eric, vivido por Guy Pearce. Aliás, o nome dele não é mencionado em momento algum. Só nos créditos é que vemos o nome do protagonista. Em todo caso, Eric tem seu carro roubado por três bandidos em fuga, e logo começa uma perseguição pelo interior australiano à procura do carro. O espectador só descobrirá ao final porque o carro é tão importante para Eric, a ponto de ele estar disposto a matar e a morrer pelo veículo. No meio do caminho ele encontra o irmão mais novo de um dos ladrões, Rey (Robert Pattinson). O jovem é mentalmente deficiente e está ferido, porém mesmo assim se tornará um improvável companheiro de viagem para o endurecido homem.

No entanto, quem espera uma amizade entre eles, um sentimento capaz de redimi-los, algo que aconteceria na maioria dos filmes, vai se decepcionar. Na visão do diretor e roteirista David Michôt, o mesmo de Reino Animal (2010), a humanidade parece estar vivendo seus últimos dias e a dura paisagem australiana serve como perfeita extensão da crueza dos personagens. Naquele lugar, se torna até natural encontrarmos figuras bizarras como o vendedor de armas anão ou a dona de casa que agencia encontros com garotos e oferece um ao personagem de Guy Pearce. Na verdade, perdura no filme a sensação inquietante de que a humanidade simplesmente enlouqueceu… Só uma pessoa em todo o filme parece fazer o bem, a veterinária que recolhe cachorros para impedi-los de virar fonte de alimento para os humanos.

Se as estruturas são praticamente inexistentes e a loucura domina, faz sentido que o personagem mais humano do filme seja justamente o deficiente mental Rey. No começo ele ainda se mostra apegado ao irmão que o abandonou, mas a sua inocência, por menor que seja, é destruída por Eric durante a viagem. A atuação de Pattinson é sensacional, com o ator deixando seus dias de vampiro brilhante para trás e compondo um personagem surpreendente: como o filme que o cerca, Rey é estranho, mas também consegue ser engraçado e até cativante em alguns momentos. Rey, curiosamente, em alguns momentos se mostra mais esperto que Eric, noutros expõe sua fraqueza, a necessidade de depender de alguém para lhe orientar. Enquanto Pearce, mais durão do que nunca, é o motor da narrativa com sua determinação ferrenha, Pattinson e Rey incorporam a imprevisibilidade dominante na história.

No máximo, se observa entre eles alguns poucos momentos de humanidade, em meio ao mundo cruel. Transitando entre faroeste, road-movie e apocalipse, David Michôt cria um universo real e niilista, e não suaviza a experiência para o espectador. O ritmo é lento, as imagens são quentes e saturadas de dia e sombrias à noite, a trilha sonora é dissonante e nervosa, e a tensão é construída de forma completamente diferente do que o espectador está acostumado. Como somos simplesmente jogados no meio da situação, sem compreender as motivações dos principais personagens, a confusão domina a experiência.

No entanto, essa confusão é válida, pois a visão de David Michôt sobre o seu universo também é dominada pela confusão. Ao mostrar uma Austrália sem leis e onde a degradação do ser humano, livre dos limites sociais, é cada vez maior, acabamos sentindo o mesmo que os amedrontados e confusos personagens do filme, que perderam seus referenciais. Ao final das contas, temos uma experiência incomum, capaz de mexer com a mente do espectador, como tantos outros exemplares do cinema australiano vistos ao longo das décadas: um faroeste sem cavalos, onde as pessoas são tão duras quanto o solo onde são enterradas.

Nota: 8,0