“O ator precisa estar habitado por dentro”.

Dentre as várias e fascinantes reflexões de Paulo José sobre o trabalho de ator, que se sucedem num fluxo atordoante em Todos os Paulos do Mundo, filme de Rodrigo de Oliveira e Gustavo Ribeiro que chega a Manaus nesta semana, essa é talvez a mais patente, a mais definitiva, a que melhor explica – se isso for possível – a arte de José, nome fundamental do cinema, da televisão, do teatro e da arte brasileiras, desde a sua entrada em cena, na década de 1950.

Que Paulo contém multidões, não há dúvida. O começo e o final do filme constroem longas sequências silenciosas a partir de dezenas de obras do ator, nas quais o olhar expressivo e o rosto ora pungente, ora pensativo, ora sarcástico, ora desesperado (e ora muitas outras coisas) de Paulo José mostram a incrível abrangência de seu trabalho, que tornaria possíveis – e inesquecíveis – filmes como Todas as Mulheres do Mundo (1966), Macunaíma (1969), O Rei da Noite (1975), Policarpo Quaresma, Herói do Brasil (1998), Saneamento Básico: O Filme (2006) e dezenas (dezenas mesmo) de outros, sem falar nos seus trabalhos para a televisão e o teatro.

Com um título que alude ao já citado Todas as Mulheres…, de Domingos de Oliveira, a obra que projetou Paulo com força total no cinema brasileiro, assim como o seu diretor e a atriz Leila Diniz, o filme é uma viagem amorosa por uma carreira verdadeiramente única na filmografia nacional – não me consta, pensando agora, outro ator com uma presença tão massiva e sólida no cinema brasileiro, e que tenha participado tão decisivamente de todos os momentos cruciais de sua trajetória, da exuberância e senso de aventura do Cinema Novo ao lento desmonte promovido pela ditadura, da quase extinção com o fim da Embrafilme à reemergência e revigoramento a partir da década passada. Ao mesmo tempo, através dos depoimentos do homem Paulo, é possível vislumbrar um pouco da inspiração, do propósito, da experiência e da sabedoria que alimentaram tamanha grandeza.

A estrutura formal escolhida pelos diretores lembra a de outro documentário recente sobre um grande artista brasileiro – A Música Segundo Tom  Jobim (2012), de Nelson Pereira dos Santos e Dora Jobim. Como aquele filme, Todos os Paulos do Mundo não é uma apresentação didática e cronológica da carreira do ator, mas um apanhado subjetivo e emocional de sua obra, guiado pelas palavras e ideias do retratado. Nascido no município gaúcho de Lavras do Sul em 1937, Paulo teria participação essencial nas cenas teatrais de Porto Alegre (ele fundaria o Teatro de Equipe, junto a luminares como Paulo César Pereio e Lilian Lemmertz) e São Paulo (onde ele integraria o revolucionário Teatro de Arena, um dos pólos mais férteis da dramaturgia brasileira até o seu esmagamento pelo regime militar, na década de 1960), antes de se aventurar pelo cinema e criar parcerias antológicas com Domingos de Oliveira, Joaquim Pedro de Andrade (Macunaíma) e Maurício Gomes Leite (A Vida Provisória).

Paulo fala sobre tudo isso – e também sobre a diferença entre atuar para o teatro e para o cinema, o ideal (José chama de vocação) de sua geração de querer transformar o mundo, o despertar doloroso após o AI-5, a potência amorosa de sua interação com Leila Diniz, durante as filmagens de Todas as Mulheres…, a paixão fulminante por Dina Sfat, com quem foi casado por quinze anos, os fotogramas de filmes defeituosos que eram jogados como lixo perto de sua casa e que lhe despertaram a paixão pelo cinema, e uma miríade de outras coisas sob o sol, na voz do próprio Paulo ou de outros intérpretes que lhe cruzaram o caminho e aqui lhe rendem tributo, como Marília Pêra, Milton Gonçalves, Selton Mello, Joana Fomm e muitos outros. A proximidade de Rodrigo e Gustavo com Paulo – ele colaborou ativamente na construção da narrativa e na organização de suas falas no filme – também rende outros momentos pungentes, como o registro do aniversário de oitenta anos do ator, que, infelizmente bloqueado pelo mal de Parkinson, após anos de convivência com a doença, diagnosticada em 1992, mal consegue articular aquela voz tão especial. Felizmente, os muitos Paulos ainda o habitam por dentro, e seu olhar conserva a mesma riqueza.

Além do prazer de se assistir a tantos momentos memoráveis de um grande artista, Todos os Paulos do Mundo tem interesse particular para cinéfilos e admiradores do cinema nacional, já que, com seu enfoque voltado à obra cinematográfica de Paulo José, somos apresentados a muitas produções importantes e em boa parte esquecidas, que o filme pode ajudar a redescobrir. Não fosse o som de qualidade variável – assim como Paulo, outro emblema da cinematografia brasileira –, que prejudica a compreensão de boa parte das falas, e Todos os Paulos do Mundo seria uma das experiências mais emocionantes que o cinema nacional tem para oferecer em 2018. Ainda assim, não faltam qualidades positivas, e é uma ótima pedida para se ver em Manaus – com o adicional daquele cenário charmosíssimo e aconchegante que é o Cine Casarão.