Nossa memória é formada por lembranças que estão na consciência. Neste processo, a atenção é fundamental, sendo guiada pelos afetos na sua captação de sensações. Por isso, muitas vezes, mediante nossas emoções, somos direcionados a ter mais atenção naquilo que dar prazer ou satisfação. A memória afetiva uma resposta disso, uma percepção sensorial ligada a momentos afetivamente importantes. O resgate da memória não apenas é fundamental para o nosso desenvolvimento psicológico e de autoconhecimento como também para o entendimento dos rumos da nossa história.

Neste viés, temos o cinema que surge, por meio da sua imagem cinematográfica, como forma, função e sintoma de recuperar a memória e expô-la como fenômeno na tela. Como memória viva, das preocupações políticas e sociais, o cinema reproduz imagens do passado e presente como uma memória afetiva coletiva, aumentando sua relevância de entender o presente através do passado, de articular a realidade e a ficção e de permitir o encontro dele com a história. Assim, temos a possibilidade de compreensão de registros pessoais que não foram bem resolvidos ou entendidos e transformar atitudes negativas em positivas para facilitar o nosso crescimento e edificação do nosso ser.

O curta documental de animação Torre de Nádia Mangolini se enquadra muito bem neste aspecto. Funciona como a ponte entre cinema e história para estabelecer laços com a memória passada e confortar antigos conflitos e traumas.

A animação revisita os efeitos nocivos da Ditadura Militar Brasileira, através das memórias dos quatro filhos do militante político Virgilio Gomes da Silva, torturado e morto na época do regime. É praticamente um estudo sobre a memória afetiva a partir da perspectiva dos herdeiros do trauma, daqueles que tiveram a infância roubada – ou “sequestrada” como um dos personagens ironiza em um determinado da obra – sob a ação da opressão e violência do regime militar.

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Produzido pelo Estúdio Teremim – pertencente à própria diretora e seu marido, Marco Vinícius – a animação teve seu lançamento no último Festival Internacional de Curtas de São Paulo e levou o troféu de melhor direção de arte no Festival de Brasília. Neste quesito, Torre se assemelha visualmente aos traços de tinta em relevo melancólicos do elogiado O Menino e o Mundo de Alê Abreu. A estética da animação é muito dinâmica na confecção de cada frame da construção poética-documental, facilitada pela montagem virtuosa de Nádia, que aos poucos, revela de quem é o misterioso ponto de vista que insiste em aparecer desde a cena de abertura – explorado pela diretora como um elemento espectral – para assim, entendermos o título da animação e captarmos a barreira imposta pelo regime militar na separação entre pais e filhos.

Visualmente Torre é hábil na exploração da questão da memória, a partir da faixa etária dos seus protagonistas. Ao começar com Isabel, a filha mais nova de Virgilio, o curta evidencia que a caçula pelas lembranças remotas que possui do regime militar, apresenta experiências muito mais puras e inocente, algo muito bem encenado por Nádia através do grafite de cores neutras e leves como o branco. Também não há grandes elementos nos cenários, indicando uma memória muito mais subjetiva e lúdica frente aos eventos, afinal Isabel ainda não tinha maturidade ou compreensão necessária para se dar conta daquela dura realidade. Por sua vez, Vladimir, o irmão mais velho, a variedade de tintas e cores é mais forte e sombria, com camadas e cenários diferentes, deixando claro que a memória concreta é acompanhada por emoções mais intensas, que permitem o próprio personagem faça as reflexões mais consistente sobre o seu passado.

Nadia também acerta ao criar algumas rimas visuais para dar significado as duas figuras essenciais do seu trabalho: a figura de Virgílio é desenhada nas memórias dos seus quatro filhos como um espectro fantasmagórico que está sempre se esvaindo da tela, deixando um sentimento de saudade e vazio; do outro lado, temos o regime militar que ganha o aspecto de uma fumaça negra que praticamente traga e “apaga” seus opositores. São elementos que nunca ganham uma forma física, ficando restritos ao campo da abstração.

Cada parte da história dos quatro personagens da família Gomes da Silva é conectada com historias contundentes de como a ditadura militar aniquilou das suas lembranças da infância, a figura paterna, deixando sequelas no processo de identidade de cada um. Se há uma crítica construtiva que faço em relação à animação, é o pouco aprofundamento de Ilda Martins (a mãe), sem dúvida a mulher guerreira, que além enfrentar a tortura e o encarceramento militar, teve que lidar com a morte do esposo e criar quatro filhos distantes do seu país. Com o enfoque na ausência de Virgílio, as memórias e as emoções de Ilda ficam em segundo plano, e isso é uma pena.

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Mesmo assim, Torre se comporta como uma animação sensível, graças ao seu discurso lúdico de como a memória afetiva serve como enfrentamento das dores e traumas históricos gerados pela ditadura. É uma experiência bonita, que trabalha as particularidades da subjetividade para acessar o campo da memória e ressignificar sentimentos, emoções e dores daqueles que viveram este período e mostrar para aqueles que não participaram desta época, que o cinema serve como uma ferramenta empática, de não deixar que estas memórias desfaçam no esquecimento.