“Ele não estará morto enquanto nos lembrarmos dele”.

Dr. McCoy no final de Jornada nas Estrelas 2: A Ira de Khan (1982)

Hoje morreu Leonard Nimoy. O ator (e diretor, fotógrafo e escritor) tornou-se famoso mundialmente como o Senhor Spock, personagem da inesquecível série clássica de Jornada nas Estrelas. Spock morreu na ficção, no filme mencionado na citação de abertura deste texto. Apesar das frequentes picuinhas entre eles, foi o seu amigo da nave Enterprise, o doutor McCoy, quem disse a frase que de certa forma sintetizava o filme. Essa frase se aplica agora, neste momento no qual Nimoy se foi de verdade, vítima de obstrução pulmonar. Ele vinha enfrentando problemas respiratórios desde o ano passado. Diferente do seu icônico personagem, ele não voltará.

Leonard Simon Nimoy nasceu em 1931 em Boston, filho de pais imigrantes ucranianos e judeus. Ainda cedo descobriu o teatro, tendo aparecido numa encenação de “João e Maria” aos 8 anos de idade. Ele se manteve ativo nos palcos até a década de 1990, mesmo após o sucesso como Spock.

Antes disso, porém, Nimoy serviu no exército na década de 1950, e após ser dispensado começou a fazer carreira como ator e a ser visto em pequenos papeis no cinema e na TV. Foi na telinha que ele veio a fazer seu nome, e o ator apareceu em praticamente todos os seriados famosos do final dos anos 1950 até os anos 1960: os faroestes Bonanza e Rawhide, o policial Os Intocáveis, e o clássico Além da Imaginação, entre outros.

leonard nimoy spock star trekNo começo dos anos 1960 o produtor e roteirista de TV Gene Roddenberry produzia um seriado chamado The Lieutenant, no qual Nimoy apareceu como convidado. The Lieutenant, um programa policial, só durou uma temporada, mas foi instrumental no futuro de um dos maiores fenômenos da cultura pop mundial. Roddenberry e Nimoy ficaram amigos por serem veteranos de combate na guerra, e quando a série foi cancelada, o produtor teve a ideia de fazer um show de ficção-científica como seu próximo projeto.

A ideia dele era simples e complexa ao mesmo tempo. Seria como uma caravana no espaço, uma versão espacial de um faroeste. Toda semana acompanharíamos as aventuras da tripulação da nave estelar Enterprise, que viajaria pelo espaço à procura de novas vidas e novas civilizações. A visão de Roddenberry era utópica: no futuro a humanidade teria aprendido a resolver suas diferenças e a viver em harmonia e, além disso, a Terra faria parte de uma Federação de planetas. Ele queria ter uma tripulação com várias etnias e até com um alienígena no meio, o Sr. Spock. E Roddenberry nunca quis outro além de Nimoy no papel.

Em 1965 o primeiro piloto de Jornada nas Estrelas (Star Trek) foi filmado, mas depois foi rejeitado pelos chefões do canal NBC por ser “cerebral” demais. Eles então deram a Roddenberry a chance de fazer um novo piloto – algo inédito até então – e com uma história mais voltada para a aventura. Todo o elenco foi reescalado, menos Nimoy – o Capitão Pike, vivido por Jeffrey Hunter, foi trocado pelo Capitão Kirk de William Shatner, que a exemplo de Nimoy também era um veterano da TV.

Jornada nas Estrelas entrou no ar em 1966 e por toda a sua existência foi ameaçada pela baixa audiência. Mas logo de cara angariou um grupo de fãs fiéis que gostava de acompanhar as aventuras dos personagens. Os três principais representavam diversos aspectos da psique humana: o médico da nave, o Dr. McCoy (vivido pelo também já falecido DeForest Kelley) era o emocional do grupo, enquanto Spock, o alienígena do planeta Vulcano, era governado pela lógica. E o capitão Kirk ficava no meio, tentando equilibrar os dois extremos para comandar a nave.

A série enfim foi cancelada em 1969, depois de três temporadas, e pouco antes do Homem chegar à Lua. Para Nimoy, foi apenas um trabalho que chegou ao fim, e logo a seguir ele assumiu um papel fixo que durou anos no seriado Missão Impossível. Mas o inimaginável aconteceu: as reprises da série começaram a fazer cada vez mais sucesso. Nos anos 1970, Jornada estava em todos os lugares e era reconhecida pelo grande público.

A repercussão deixou Nimoy marcado para sempre pelo papel de Spock. Nessa época, papeis na TV eram raros e, para ganhar um dinheiro, o ator começou a apresentar o programa In Search of…, um investigativo sobre fenômenos paranormais – o episódio sobre o Monstro do Lago Ness foi inesquecível… E em 1977 Nimoy publicou a autobiografia “Eu Não Sou Spock”, numa tentativa de se dissociar um pouco do personagem – o livro enfureceu alguns fãs do seriado, que na época já começavam a ser chamados de trekkies. Porém, o sucesso de Star Wars no cinema em 1977 deixou o caminho aberto para o retorno de Jornada, agora no cinema.

leonard nimoy spock star trekO primeiro filme foi lançado em 1979. Jornada nas Estrelas: O Filme tinha problemas de ritmo e de roteiro, mas foi um enorme sucesso, provando que o público estava com fome por mais aventuras. Foram feitos mais cinco filmes até o começo dos anos 1990: Jornada nas Estrelas 2: A Ira de Khan (1982), Jornada nas Estrelas 3: À Procura de Spock (1984), Jornada nas Estrelas 4: A Volta para Casa (1986), Jornada nas Estrelas 5: A Última Fronteira (1989) e Jornada nas Estrelas 6: A Terra Desconhecida (1991).

Nimoy dirigiu o terceiro e o quarto filmes, iniciando uma bem-sucedida carreira de diretor que também inclui a comédia Três Solteirões e Um Bebê (1987). Foi com os filmes que eu descobri Jornada, ao alugar o videocassete do terceiro filme nos anos 1980. Eu era um garoto e, para mim, a história daquele filme, com a tripulação se reunindo e arriscando tudo para resgatar o Spock, amigo deles, foi muito marcante. Havia um núcleo humano muito forte dentro daquele filme com efeitos e aventura, e foi isso que me conquistou em Jornada nas Estrelas – e a Enterprise era muito bonita também, claro…

Só foi depois, com as reprises na Manchete e na Record, que consegui ver a série original e a sua magia. Ela ainda se mantém, apesar dos efeitos meio precários e dos monstros falsos que de vez em quando surgiam. Nesse meio tempo Leonard Nimoy também apareceu na sucessora, outra série que marcou época, Jornada nas Estrelas: A Nova Geração. Em dois episódios os fãs puderam ver o Spock de Nimoy ao lado do Capitão Picard de Patrick Stewart, outro momento especial na história da franquia. Depois disso, Nimoy só voltou a viver Spock 18 anos depois, quando J. J. Abrams o chamou para voltar a usar as orelhas pontudas em Star Trek (2009), o reboot da franquia. Ele também reapareceu numa breve cena na continuação, Além da Escuridão: Star Trek (2013), o qual seria seu último trabalho como ator.

Spock foi um personagem que atravessou décadas e se manteve como ícone cultural no mundo inteiro. E isso se deve, na maior parte, pela forma como Nimoy o interpretou. Ele sempre levou a sério o seu personagem e o enriqueceu com gestos e maneirismos que se tornaram famosos: o toque neural no pescoço, que nocauteava os vilões dos episódios, ou a saudação com os dedos da mão abertos, marcando o “Vida longa e próspera”, foram ideias de Nimoy.

Mas acima de tudo, o ator ensinou a várias gerações que ser diferente era legal, que ser você mesmo podia ser cool. Na série, Spock era o estranho – por ser meio humano, era rejeitado pelos demais vulcanos, e na Enterprise era o único de sua raça em meio a humanos emotivos e ilógicos. Mesmo assim, com o tempo Spock os aceitou e passou até a considerar Kirk, McCoy e os demais como amigos. Havia sempre uma humanidade latente por baixo da expressão fria de Nimoy no papel, e foi isso que conquistou o público. Ele foi o herói de muitos nerds e vários deles seguiram carreiras científicas e criaram invenções que mudaram o mundo, influenciados por Jornada e Spock.

leonard nimoy fringePara um garoto em crescimento, esses ideais de aceitação e de valorização da amizade eram muito fortes. Alguns trabalhos artísticos nos influenciam muito enquanto crescemos, e Jornada foi um desses trabalhos para mim. E esses ideais se cristalizaram pela atuação e presença de Nimoy, e sobrevivem dentro de milhões de fãs no mundo todo. É por isso que Jornada nas Estrelas ainda é vista e ainda é referenciada, mesmo depois dos efeitos terem ficado velhos ou de algumas tramas terem sido ultrapassadas.

Em 2016, Jornada vai comemorar seu aniversário de 50 anos. Haverá um novo filme para celebrar a data. Há alguns meses surgiu o boato de que Leonard Nimoy e William Shatner apareceriam nele, junto aos jovens atores Zachary Quinto e Chris Pine, que interpretam as novas versões dos seus personagens. Agora isso não será mais possível. Mas a obra sobrevive: em momentos como esse, é sempre bom retornar ao enredo de A Ira de Khan, ainda o melhor dos filmes da franquia. Em meio à aventura espacial, havia no filme uma bela reflexão sobre a vida e a morte. Naquele filme, Spock transferia seu “katra”, sua alma, para a do amigo e desafeto McCoy. Em cada morte há sempre uma esperança, o filme parece dizer, e esse ensinamento permanece. Assim como outros: “As necessidades de muitos superam as necessidades de poucos”, ou o inesquecível diálogo de um episódio na temporada final da série, sobre as “infinitas diversidades em infinitas combinações” do universo. Essa fala é sobre como as nossas diferenças podem ser a verdadeira força da humanidade, embora ela mesma ainda não pareça ter se dado conta disto, e a essência de Jornada está contida nela.

Não à toa, o Capitão Kirk se despedia do amigo Spock em A Ira de Khan chamando-o de “o mais humano que conheceu em suas viagens”. Spock, de certa forma, transferiu um pouco da sua alma para todos os seus fãs. Nimoy e Spock foram mais do que ator e personagem, foram professores de milhões de pessoas em todo o mundo. O homem e o Vulcano agora partem para as estrelas, mas o aprendizado continua.