Já vimos muitas histórias de detetive ao longo dos anos. Já vimos muitos filmes policiais com parceiros opostos que aprendem a trabalhar juntos e, de formas estranhas, acabam se tornando amigos. Já vimos muitos filmes envolvendo caçadas a assassinos em série. De fato, não há muitas coisas novas em True Detective, nova série policial da HBO. O que é realmente inovador e diferente no programa criado pelo roteirista e produtor Nic Pizzolatto é a forma como ele usa esses elementos tão reconhecíveis, fazendo com que eles coexistam junto aos verdadeiros interesses do seriado: uma representação fiel de uma geografia muito característica dos Estados Unidos, e uma discussão filosófica sobre bem e mal e sobre a natureza do universo. Duas coisas que nem sempre se vê em histórias policiais.

O local geográfico é a Louisiana, com suas florestas sombrias e pequenas cidades convivendo lado a lado com indústrias e grandes torres metálicas. Foi lá que, em 1995, os detetives Martin Hart e Rustin Cohle, interpretados respectivamente por Woody Harrelson e Matthew McConaughey, investigaram o macabro assassinato da jovem Dora Lange. Numa manhã, ela foi encontrada em meio a uma plantação queimada, amarrada a uma árvore, com chifres colocados na sua cabeça, marcas de facadas no abdome e uma espiral desenhada nas costas.

Em 1995 Hart e Cohle encontraram o suspeito do assassinato. Em 2002, eles brigaram e nunca mais se falaram. E em 2012, ambos são entrevistados por outros detetives, que agora estão investigando outro assassinato, cometido nos mesmos moldes do crime de 17 anos antes. Ao longo dos oito episódios que compõem esta primeira temporada, o espectador acompanha os dois detetives e os personagens que os cercam nestas três linhas narrativas.

Essa estrutura incomum é atribuída ao fato de Pizzolatto ter concebido True Detective como uma única história com começo, meio e fim, efetivamente consolidando a volta do formato de antologia – a série terá seu elenco e trama renovados a cada ano. E essa história é contada de forma cinematográfica. Fala-se muito, ultimamente, sobre como a TV se aproximou do cinema, tomando-lhe emprestado algumas das suas características como a sofisticação narrativa e técnica, a grandiosidade, e até alguns dos seus mais famosos talentos à frente e atrás das câmeras. Esta série realmente parece um filme, e não apenas por ter sido estrelada por dois atores que vivem momentos de destaque em suas carreiras na tela grande. É o maior exemplo de TV autoral de que se tem notícia em épocas recentes: Pizzolatto escreveu sozinho os oito episódios – não há sala de roteiristas em True Detective – e todos foram dirigidos pelo mesmo diretor, Cary Joji Fukunaga.

Fukunaga concebeu alguns momentos inesquecíveis e altamente cinematográficos nestes episódios. O mais incrível deles é o longo plano-sequência do final do quarto episódio, “Who Goes There”. Por quase sete minutos, acompanhamos a eletrizante fuga de Cohle e um informante, membro de uma gangue, por um bairro, escapando de criminosos locais e também da polícia. O resultado final é impressionante, mostrando uma perfeita coordenação entre atores, dublês, veículos e demais elementos para criar um dos mais extraordinários momentos recentes da TV.

Apesar da sua vocação cinematográfica, True Detective se beneficia do fato de ser TV episódica, por conseguir explorar a fundo o local onde se passa a trama e também os seus personagens. Aqui, o lugar onde se passa a história também é um personagem, e o seriado se mostra fascinado com elementos típicos da iconografia americana e a forma como as pessoas vivem naquele ambiente. As florestas da Louisiana são ameaçadoras, e sempre há um ar sinistro nos demais ambientes onde a história se passa, todos muito americanos: os quartos de motel, os cultos religiosos no meio do nada, os postos de gasolina, os clubes de strip-tease… O local, aliado ao tema e ao lado macabro do caso, evocam de vez em quando lembranças do filme Coração Satânico (1987), também ambientado naquela mesma região.

Se o lugar determina, em grande parte, como as pessoas vivem, isso é retratado melhor em duas cenas em especial: quando Cohle e Hart visitam o culto e observam sua estranha forma de religiosidade – e o cínico Cohle diz algumas coisas bem pertinentes sobre o que vê – e quando eles visitam o “acampamento” das prostitutas no meio do mato. É um mundo de pessoas estranhas e onde as mulheres não têm vez, no qual um assassino como aquele que matou Dora Lange pode passar despercebido.

Em meio a esse universo, Hart e Cohle tentam fazer sentido não apenas do caso, mas também das suas vidas. E os dois homens não podem ter pontos de vista mais antagônicos, a começar pelos seus nomes. Hart remete a heart, coração em inglês, e Harrelson o interpreta como um sujeito emotivo em busca do ideal de marido, pai e profissional que se espera dele. Mas ele é um hipócrita, pois trai a esposa (Michelle Monaghan) com moças mais novas. Quando encontra uma jovem prostituta no acampamento, Hart diz à cafetina que “ela não parece uma mulher para mim”, mas ao dizer a fala Harrelson enfatiza na sua entonação o final dela, deixando claro o que realmente é importante para o seu personagem. Mesmo assim, Harrelson não consegue deixar de injetar um pouco de humor no seu personagem e isso o torna carismático.

Já Cohle, cujo nome lembra cold, frio em inglês, é uma criação absolutamente estupenda cujos pais são Pizzolatto e McConaughey. Cohle teve uma vida difícil e não acredita em nada – “a humanidade deveria parar de se reproduzir e caminhar de mãos dadas para a extinção, numa última meia-noite” é uma das primeiras coisas que diz a seu parceiro. Aliás, para Hart, Cohle é o “Michael Jordan dos filhos-da-p***”, noutra frase memorável. Um homem mais próximo do mal do que do bem, embora trabalhe para a lei, Cohle é vivido por McConaughey com intensidade e carisma, em mais um grande trabalho recente do ator. Até sua aparência contribui para a composição do personagem – ainda um pouco emaciado depois de Clube de Compras Dallas (2013), o ator usa sua magreza e decadência física para tornar o detetive ainda mais estranho, especialmente nas cenas ambientadas em 2012.

Aos poucos, o espectador começa a entender o ponto de vista de Cohle e até a compreendê-lo. De todos os personagens da série, ele é o mais honesto, por isso ele se torna o homem ideal para prender o assassino. Disposto até a burlar a lei, Cohle envolve Hart na caçada e, numa das facetas mais surpreendentes do roteiro, vemos que ambos não estão contando toda a verdade aos investigadores de 2012. Só eles, e o espectador, conhecerão toda a história e suas repercussões. Só eles e nós saberemos até onde os detetives foram para pegar o assassino e o estranho culto que o cerca.

Explica-se: Pizzolatto, com sua bagagem de escritor, mistura duas tradições literárias americanas em True Detective, a história de detetive e o romance de horror gótico. Os ingredientes do romance gótico surgem nas referencias ao “Rei Amarelo”, o livro de contos do autor Robert W. Chambers. Nesses contos, Chambers faz constantes observações sobre uma estranha peça teatral capaz de levar à loucura quem a vê, e sua obra influenciou vários outros escritores de ficção assustadora ou sobrenatural através dos anos. A cidade de Carcosa e demais elementos e temas do livro surgem no seriado para aumentar o mistério e a tensão em torno do assassino, e há vários detalhes visuais que se encaixam nessa mitologia: a cor amarela representa o maníaco, e pode ser vista em lugares e nos figurinos de personagens ligados a ele ao longo dos episódios.

O assassino e tudo que o cerca não poderia ser mais sombrio, porém todo o seriado é estruturado com a ideia de dualidade, entre a eterna luta entre o bem e o mal. O mal, quando surge, é muito sombrio, mas o bem é difuso: nem Hart nem Cohle poderiam ser caracterizados como policiais íntegros e certinhos. É fascinante ver, ao longo dos episódios, esses dois homens influenciarem um ao outro, pegando traços das personalidades um do outro. E curiosamente é Cohle, o homem para quem “o segredo da vida é este: você está preso”, e para quem o tempo é um círculo, condenando os seres humanos a repetirem a mesma história, é ele quem encontra um pouco de luz na jornada. Os contrastes entre um homem de família e outro sem família, entre natureza e indústria, entre as duas formas de masculinidade representadas pelos personagens, foram os elementos que alimentaram o seriado. E o maior dos contrastes é aquele entre a luz e a escuridão. Às vezes um deles vence, às vezes outro, mas essa luta sobrevive, e foi ela que fez desta primeira temporada de True Detective algo intrigante e especial.

 Matthew-McConaughey

Nota da temporada: 9,0