A vida de Jesus Cristo já foi ilustrada a exaustão no cinema. Curiosamente, a maioria dá ênfase e discorre sobre seu nascimento, morte, ressurreição e é claro, aos seus milagres. Por isso é interessante que o diretor e roteirista colombiano Rodrigo Garcia foque exatamente em uma passagem bíblica específica do livro de Mateus até então pouco explorada no cinema: “A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome”.

 Apesar do capitulo ser breve, com pouco versículos, ele na teoria oferece ótimas possibilidades de dramaticidade, afinal acompanhar o santo homem sofrendo três tentações pelo diabo nos 40 dias e 40 noites em que caminhou pelo deserto solitariamente é um argumento que soa interessante no campo das ideias, ainda mais para travar um duelo entre duas figuras centrais na representação do bem e do mal.

É a partir desta premissa – ainda que curta – que o cineasta constrói os 90 minutos de Últimos Dias no Deserto, um estudo introspectivo sobre o processo da fé e crença de um homem sagrado que se vê diante de um ambiente inóspito, confrontando seus medos e inseguranças frente seus valores religiosos e morais. O Jesus delineado aqui, pouco lembra a figura messiânica vista na maioria dos filmes: é demasiadamente humano, um homem que jamais apresenta seu dom divino ou milagres e que está sempre em dúvida quanto a sua missão. É com este “rapaz comum” que somos convocados pelo filme a acompanhar a sua jornada de descobertas e de autoconhecimento.


O Deserto da introspecção e das tentações

Logo na primeira cena do filme, o espectador percebe que Jesus (Ewan McGregor no mesmo tom sereno e tranquilo do mestre Jedi Obi-Wan Kenobi) já se encontra na sua missão no deserto há vários dias. Esta escolha de Garcia de nos colocar com ação transcorrendo, permite a sensação de estarmos tão perdidos no quesito tempo como o próprio personagem e junto com ele, sentimos sua aflição e ansiedade na busca de respostas. O próprio ambiente desértico é poderoso no seu visual, quase como um Deus onipresente, que deixa a figura (e imagem) de Cristo sempre pequena frente ao cenário. É como se aquele lugar vazio e árido materializasse a próprio sentimento de inadequação e insegurança do messias. Ao vê-lo questionar do pai (Deus) uma resposta sobre a finalidade da sua missão no lugar e observar que não há resposta por parte do criador, apenas o seu silêncio, é fácil perceber que esta longa jornada pode até apresentar um viés físico, mas ela será primordialmente uma batalha psicológica.

Logo, a escolha do sensacional Emmanuel Lubezki (tricampeão do Oscar) para encenar a fotografia deste ambiente é uma das grandes qualidades do filme. O fotógrafo explora em cada frame, um bom uso de luzes, através de imagens que captam a paisagem do céu com cores fortes, funcionado como uma possível intervenção divina que poderá aparecer a qualquer momento – mesmo que isso jamais ocorra -, enquanto o deserto é todo pontuado com tons acinzentados e opacos, que deixa uma densa sensação que na terra árida há apenas confrontações intimistas entre o homem e sua própria experiência espiritual, sem qualquer intervenção divina.  O uso de luzes nos filtros na fotografia que inundam a imagem nas cenas mais dramáticas, oferecem um recurso eficaz de ambivalência no texto da narrativa, pois ao mesmo tempo que denota uma possível intervenção divina, ela deixa Cristo dividido entre a luz e a sombra, uma metáfora para sua personalidade frágil de homem.

É dentro deste deserto de introspecção, de tentações e de questionamentos que surgirão na confrontação com a figura do Diabo, que Garcia constrói seu argumento mais voltado na contemplação da imagem/paisagem do que nas palavras, claramente inspirado nas obras autorais de Terrence Malick. Se no cinema do veterano diretor, a figura onipresente de Deus está presente na natureza e no ambiente, em Últimos Dias do Deserto fica evidente que Cristo encontra-se solitário na sua jornada e que precisará encontrar-se através das suas próprias escolhas no ambiente hostil, sem qualquer ajuda do criador.


Menos doutrinação, mais investigações

Quem conhece a carreira de Rodrigo Garcia – que vale ressaltar é neto do escritor Gabriel Garcia Márquez – sabe que ele sempre foi um autor afeito aos textos densos na dramaticidade e voltados para a psicologia humana. Não é à toa que ele é responsável pela ótima série Em Terapia (2008-2010). Por isso Últimos Dias do Deserto é sem dúvida o seu melhor material cinematográfico para explorar a intensidade dramática da psicologia dos seus personagens.

Mesmo respeitoso na trajetória de Cristo no deserto, Garcia toma algumas liberdades na história, inclusive adiciona o encontro com uma família no deserto que na passagem da bíblia não existia. Temos um pai (Ciarán Hinds, de Munique) descrente com a vida na sociedade e que prefere se isolar no deserto, uma mãe doente (Ayelet Zurer, conhecida como a namorada do Rei do Crime na série Demolidor da Netflix) e um filho (o ótimo Tye Sheridan, o Ciclope jovem de X-Men – Apocalipse) cheio de sonhos e que deseja morar em Jerusalém.

Dentro deste arco dramático, o filme constrói basicamente bons diálogos e oferece ótimos debates e investigações sobre a existência e falibilidade humana, deixado de lado os sermões e crenças religiosas para focar na dimensão humana e emocional de Cristo. Do eterno conflito de gerações, o texto deixa claro que as diferenças entre o pai e o filho da família são idênticos aos questionamentos que Jesus trava com Deus no início do filme e por isso, ser o mediador na resolução do conflito familiar, é uma forma dele entender melhor seus sentimentos conflitivos em relação pai celestial. Logo, o relacionamento entre Cristo e o garoto apresenta uma ótima funcionalidade, já que ambos personagens se identificam pelas situações que vivem emocionalmente. Por sua vez, o roteiro jamais transforma o pai de Hinds numa figura “carrasca”, afinal sua dificuldade de relacionar-se com o filho é também  um indicativo da falta de comunicação de Jesus com Deus – e o fato de pai querer que o filho aprenda a se importar com as coisas básicas da vida, representa a mesma postura como o Deus-Pai interage com Cristo, indicando a importância que este encontre seu caminho por conta própria e por isso não responda a seus chamados.

Vale destacar, o recurso inventivo de Garcia em escolher MacGregor para interpretar também o Satanás, mesma situação feita por Anna Muylaert no recente Mãe Só Há Uma, onde a mesma atriz interpretava as duas mães. Esta escolha permite uma dimensão de duplo entre as duas figuras, como se o próprio diabo não passasse de um conflito mental – um embate psicológico de Jesus com ele mesmo – que deixa a linha tênue da dicotomia entre o bem e o mal, próximas uma da outra, tornando o processo de investigação proposto pelo roteiro interessante, afinal é o embate entre Jesus e o Demônio o responsável pelos ensinamentos que cada um vai apresentar no desenrolar do enredo. Portanto, um dos melhores diálogos do longa é quando Cristo pergunta ao seu antagonista como é a experiência de já ter estado perto do criador, evidenciando o fascínio de Cristo na espera da resposta do seu adversário, para ter assim, a real noção de saber a sensação de uma experiência que ainda não teve em vida.


Porém, nem sempre as buscas de respostas são adequadas

Apesar dos bons diálogos e o texto humano sobre Cristo, Garcia jamais consegue alinhar as duas narrativas para que ambas se encontrem de forma satisfatória ou interajam entre si. O drama familiar acaba se arrastando em vários momentos e quebra o ritmo principalmente da investigação intimista graças a uma dramatização excessiva que atrapalha os momentos contemplativos da obra. Para completar, o final estranho e anticlimático evidência as fragilidades do cineasta em fechar as arestas dos seus questionamentos como se o material proposto, não atinja a plenitude da reflexão a qual se propõe. Na verdade, nota-se em certos momentos, que Garcia evita a polêmica para não criar problemas com a religião cristã – ainda que seu texto permita inferências para isso – em torno dos desejos de Jesus, algo que Scorsese em A Última Tentação de Cristo (1988) não teve medo de colocar o dedo na ferida

Esses pecados de Últimos Dias do Deserto não o impedem de ser uma interessante reflexão sobre a fé e um olhar humano em torno da figura de Cristo. Em alguns momentos é como se acompanhássemos Jesus em sua própria sessão terapêutica e nos emocionássemos pela forma humana como ele enfrenta seus conflitos e inseguranças, sem precisar recorrer a milagres celestiais, apenas mostrar a força do seu caráter humano.