No cinema, a existência humana sempre esteve presente nas discussões, mas geralmente ligada a situações sérias nos filmes. Encarar a nossa existência – de onde viemos, quem somos e o que queremos – de forma espirituosa não é um caminho fácil de ser seguido no segmento cinematográfico. Por isso, não deixa de ser um sopro de originalidade, que um pequeno filme indie lançado no começo de 2017 na Netflix, discuta a importância da vida, dos relacionamentos e do processo de auto aceitação a partir da ótica….. dos gases que saem do orifício anal.

Sim, você não entendeu errado. Um Cadáver para Sobreviver é o bizarro e filosófico filme do peido que causou burburinho no Festival de Sundance do ano passado, dirigido pelos estreantes Dan Kwan e Daniel Scheinert, também conhecidos como Daniels. O longa funciona como uma daquelas conversas excêntricas de mesa de bar: trafega entre a complexa “filosofia cabeça”  e as experiências um tanto quanto pitorescos e surreais, mesclando questões existenciais como vida, morte e emoções a situações idiossincráticas relacionadas a ereções, masturbações e peidos. Não é uma combinação comum de você encontrar nos filmes atuais, correto?

Para surpresa geral, “Cadáver” é tão criativo por apostar em ideias tão malucas no seu texto, que supera em poucos minutos da sua duração, as comédias que Adam Sandler e Leandro Hassum estrelaram em suas carreiras cinematográficas até os dias atuais. É injusto também reduzir o filme dos Daniels a uma comédia besteirol, até porque ele se aproxima mais de uma fábula, que mesmo flertando com o excêntrico, mostra-se poético e encantador no seu road movie de descobertas em relação ao nosso papel na vida e na valorização da realidade cotidiana, fundamental na elaboração do nosso próprio mundo imaginário particular como alternativa para lidar com inseguranças pessoais.

Swiss Army Man daniel radcliffe paul dano

A estranheza da narrativa já sentida no início, quando Hank (Paul Dano), preso algum tempo em uma ilha deserta, está prestes a se matar por não ter mais esperanças de ser resgatado. Na praia, ele encontra o cadáver que chama de Manny (Daniel “Potter” Radcliffe) que possui o desconcertante talento de ter “gases eruptivos” transformando-o em uma espécie de Jet-Ski para ajudar Hank a fugir daquela ilha até um continente próximo. No local, ambos estabelecem uma amizade estreita e partem numa jornada para chegar a civilização e reencontrar o amor de Hawk, a bela Sarah (Mary Elizabeth Winstead).

Em Um Cadáver para Sobreviver os Daniels apostam na fábula imaginativa como atmosfera principal, para discutir os questionamentos existenciais de Hank e Manny. Este estilo fantasioso remete as produções de Michael Gondry e Charlie Kaufman de lidar com a natureza humana das emoções frente ao surreal. Porém, o norte principal de “Cadáver” é o de Spike Jonze de Ela e Onde Vivem os Monstros graças ao olhar melancólico e lírico que permeia a narrativa. A diferença é que o filme em questão investe mais no humor besteirol para humanizar sua narrativa, aproximando-a do público.

Curioso perceber que neste terreno que mortos e vivos soltam flatulências, órgãos masculinos eretos funcionam como bussolas norteadoras e referências à cultura pop nerd – a piada com a trilha sonora de Jurassic Park é divertida – sobre espaço para o texto aprofundar com sensibilidade, sua visão da depressão e da solidão crônica que assolam a humanidade no novo século. É fácil observar que tanto a imaginação quanto a subjetividade humana proporciona os contrastes necessários da existência: por mais que distancie o sujeito da realidade, é um mecanismo de defesa fundamental para nos proteger das frustrações cotidianas, ajudando a nos refugiar de nossos sentimentos até aprendermos a lidar melhor com eles.

Swiss Army Man

De certa forma, os Daniels pontuam com eficiência a importância dos pequenos detalhes da vida cotidiana, reconhecendo que elas estabelecem a conexão emocional com a realidade e da necessidade de nós comunicarmos e estabelecermos relações com alguém próximo, mesmo que este alguém seja um morto-vivo que existe apenas na nossa imaginação.  Isso é muito bem representado em cenas memoráveis quando Hawk e Manny encenam suas experiências no meio do mato através de festas, sessões de cinema e passeios de ônibus, revelando o quanto a comunicação e as idiossincrasias diárias, são pontuais para nosso bem-estar.

O longa também desenvolve, de maneira interessante, a dinâmica de amizade entre Hank e Manny. Se de um lado temos Manny, um morto que sente prazer em descobrir o que há lá fora – uma alma aventureira – na outra ponta temos Hank, que projeta todos os seus medos e traumas na figura do amigo, representando uma alma quase morta, que sofre por não aproveitar a vida. Em um dos melhores diálogos do filme – e que envolve masturbação –  Manny diz não entender porque as pessoas deixam de fazer coisas de que gostam, pela simples proibição das normas conservadoras.

Claro que essa relação incomum de um morto e um vivo não teria o mesmo impacto se não fosse as belas atuações. Paul Dano reproduz toda a doçura, delicadeza e melancolia do seu personagem, permitindo que o público abrace por completo seu Hank. Já Daniel Radcliffe finalmente encontra um papel excepcional para brilhar desde que abandonou a figura do bruxinho mais querido do cinema. Seu Manny é todo construído sutilmente nas composições físicas, deixando seu cadáver carismático aos nossos olhos, graças à atuação cativante do ator. Logo, a dupla apresenta uma química magnética, de fazer o público torcer que esta jornada nunca acabe.

É claro que por trabalhar tão bem os simbolismos e metáforas dentro do seu texto, o filme se “trai” no ato final e  ofereça uma explicação “impossível” de aceitar ao colocar personagens secundários na realidade fantástica da dupla, desmontando. Esta tentativa de unir a fábula com uma explicação racional estraga a mágica da narrativa até então consistente.

Swiss Army Man picture water beach dead

Nada disso, entretanto, compromete o resultado final desta inusitada comédia que através da estranha narrativa, consegue encantar o espectador pelo seu estilo franco e original de abordar temas sérios como a solidão e a depressão, mesmo partido de um humor besteirol repleto de disparates. Os Daniels apontam que o processo de aceitação pode surgir de lugares mais inóspitos possíveis. É a metáfora do peido: Quando não eliminamos os gases, estamos fazendo mal para nosso organismo. O mesmo vale quando omitimos ou negamos nossos sentimentos, isso só não faz mal como gera sofrimento para alma. E um filme como este, que consegue dosar tão bem o besteirol com a temática séria, merece por si só, uma  conferida –  e ainda oferece de brinde, a visão bizarra da bunda cabeluda de Harry Potter.