Há várias formas de se ver o filme de Ari Folman, Valsa com Bashir (2008), e uma delas pode ser a que se aproxima do jornalismo. Tem-se que a maior expressão de uma cobertura jornalística é o que um jornalista pode vivenciar num conflito armado, numa guerra. A experiência de acompanhar os percalços de pessoas que vivem (ou tentam viver) entre bombas, balas e a presença diuturna da morte já rendeu glórias, bravuras, honrarias, livros e a morte para vários jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas. Mas não há nenhuma glória, nem justificativa numa guerra. Como afirmou o diretor e roteirista Ari Folman “as guerras são fúteis sejam lá onde elas aconteçam, são estúpidas. As guerras são ideias tolas de líderes pequenos com grandes egos”. Podemos dizer, de imediato, que Valsa com Bashir é um dos melhores filmes anti-belicistas já produzidos, que pode figurar ao lado de Johnny Vai à Guerra (1971), de Dalton Trumbo.

No filme, o cineasta Ari Folman atua como um jornalista em missão não de revelar fatos que estejam acontecendo no momento, mas de investigar acontecimentos ocorridos num tempo não tão remoto em que ele próprio vivenciou. No massacre de Sabra e Chatila, no Líbano, era um soldado israelense de 19 anos que estava na linha de frente e testemunhou alguns dos terríveis fatos que lá ocorreram. Adulto e agora já cineasta, não se lembrava de detalhes até que um amigo seu, que também esteve lá, o procurou para falar de seus sonhos. É a partir daí que acompanhamos o processo de investigação no filme. Quase linearmente, essa história de recuperação da memória do personagem-diretor quanto aos fatos ocorridos, nos é revelada no filme. Como que inconscientemente sua memória havia suprimido uma parte de sua vida.

Mas, alguém dirá que Valsa com Bashir não é um documentário e aí estamos frente a uma outra discussão: “Afinal, o que é mesmo um documentário?”, repetindo a frase que dá título ao livro do pesquisador Fernão Ramos. Adentramos na esfera da pesquisa acadêmica e vamos encontrar Ramos definindo o filme documentário como “uma narrativa com imagens-câmera que estabelece asserções sobre o mundo, na medida em que haja um espectador que receba essa narrativa como asserção sobre o mundo”. O que caracteriza, portanto, o filme documentário é o fato de o espectador pressupor que está articulando afirmações verdadeiras ou plausíveis, com base no reconhecimento da intenção assertiva do realizador. Para outro pesquisador referencial no cinema documentário, Bill Nichols, “o documentário é uma representação do mundo, isto é, um tipo de filme que sustenta um argumento, uma afirmação sobre a sociedade em que vivemos, sendo que essa relação com o mundo histórico é o que o diferencia do filme de ficção”. Outra pesquisadora, Jennifer Serra, numa proposta de sintetizar esses pensamentos aponta que o filme documentário necessita oferecer aos espectadores essas asserções sobre o mundo por meio de um discurso, isto é, de uma representação sobre um determinado tema. Mas, avança na compreensão de que o documentário, baseado no compromisso ou na relação que o filme estabelece com o mundo histórico, pode se utilizar de recursos estilísticos próprios da narrativa ficcional (como a animação, p.e.) ou da ausência de um referente visual do mundo histórico.

E aí chegamos à terminologia do documentário animado, do qual Valsa com Bashir é um legítimo representante, aliás, é o primeiro documentário animado em longa-metragem. Claro está que ele não é o primeiro, pois que há muito tempo a combinação da realidade com a animação (desde 1918, no filme de Winsor McCay, The Sinking of the Lusitania) ocupa o mundo do cinema, principalmente no chamado “cinema educativo”. Sem entrar na discussão mais fechada dos conceitos de documentário, concordamos com a definição de que, por excelência, um documentário animado é aquele cuja animação domina toda a narrativa, mas que ela está ligada à representação que se faz do mundo, de modo que ambos os gêneros (documentário e animação) estão indissociavelmente misturados. Nesse sentido, a animação é a forma dramática pela qual o conteúdo assertivo é proposto no filme, alcançando níveis de compreensão que não seria possível exclusivamente através de imagens live-action. É essa capacidade retórica da animação (“descrever situações, representar sensações e estabelecer relações entre situações visíveis e invisíveis”, de acordo com a pesquisadora Índia Mara Martins) que a torna, muitas vezes, imagem mais poderosa de certos aspectos do mundo que a imagem fotográfica. Há outro aspecto relevante ao se relacionar animação com um documentário: a animação pode adquirir características bem mais reflexivas porque o espectador sabe que, por mais realista que possam ser aquelas imagens, ele está frente a algo construído e não diante de um registro do mundo filmado. Tudo isto para reafirmar que Valsa com Bashir é um legítimo representante da categoria documentário animado.

Mas, voltemos ao filme. A perspectiva jornalística e documental de Folman, no que representa toda a investigação que faz junto a amigos e outrora parceiros do momento do massacre palestino, confunde-se com a busca por um restabelecimento da memória não só individual, mas da presença do exército israelense no conflito. Através das impressionantes imagens animadas do filme, marcadas por um expressionismo sombrio, Folman parece exorcizar seu próprio sentimento de culpa, declaradamente esquecidas dos piores momentos do confronto bélico. Todo o filme se estrutura nessa tentativa de recuperação da memória esquecida, buscada junto a amigos e psicólogos e nessa trajetória vamos acompanhando (e conhecendo) todos os percalços e horrores da guerra. E o filme nos mostra tudo isto em imagens oníricas e estilizadas, onde a mistura de animações de depoimentos e entrevistas (ainda que às vezes tenham as vozes sido substituídas e rostos tenham sido modificados a pedido dos interlocutores) e a criação de animações poéticas a partir de imagens de depoentes constituem a própria essência do documentário animado. Não só a imagem de abertura dos três soldados nus saindo do mar e vestindo-se na praia (que se repete várias vezes no filme), como a do sonho do soldado no barco com uma gigantesca mulher nua que vem resgatá-lo e a própria imagem-tema do soldado enlouquecido que dispara sua metralhadora enquanto dança a valsa, constituem momentos poéticos e líricos da subjetividade necessária ao clima de realidade imposto no filme. É como se reafirmasse o tom profético de outro grande cineasta, o chinês Jia Zhang-ke: “Alguns dos sentidos de realidade não podem ser expressados pela mera observação do real. Em muitos momentos, a intervenção ‘surrealista’ é muito mais verdadeira para essa expressão do mundo”.

Valsa com Bashir também é exemplar como documentário ao sustentar quase um dogma desse formato: o compromisso ético com suas personagens. Mesmo quando substitui vozes e rostos dos entrevistados, como que estabelecendo um pacto com essas pessoas, a preocupação do diretor é com a preservação ética de que essas pessoas continuarão existindo e que suas vidas e individualidades serão alteradas diretamente após sua recriação no filme. E isto é basilar num documentário, uma particularidade essencial inexistente numa obra de ficção.

Por fim, há ainda dois comentários a serem feitos: o primeiro, quanto ao impacto que as cenas reais do massacre colocadas ao final de Valsa com Bashir exercem sobre os espectadores. Por mais cruéis e ‘realistas’ que possam ser as imagens animadas, elas não são potencialmente superiores em dramaticidade e ‘chamada à realidade’ do que aquelas poucas imagens reais nos últimos segundos do filme que nos são apresentadas, por mais que sejam conhecidas pela ampla divulgação do massacre. Novamente nos confrontamos com o peso de imagens ditas autênticas e imagens recriadas na narração de fatos históricos; contudo, deve ser a simbiose, inovadora e criativa, de imagens dessas naturezas a melhor oferecerem a completude do documentário cinematográfico. O outro comentário diz respeito à postura política de Israel no conflito: no filme parece que a ação do exército israelense só ocorreu para conter os “excessos” praticados por membros da Falange libanesa (milícia da extrema direita cristã) nos campos de refugiados civis palestinos de Sabra e Chatila após a morte do presidente Bashir Gemayel. No entanto, sabe-se – e os comentários anexos ao DVD do filme sugerem – que o exército de Israel, sob o comando de Ariel Sharon, tinha pleno conhecimento do que ocorreria naqueles campos e ajudou estrategicamente a construir o massacre. Se Ari Folman parecia esquecido disto, ele teve a ousadia e a superioridade em contribuir, à sua maneira, para a recuperação da memória histórica a partir da recomposição de sua própria participação com um filme inteligente, revelador e humanístico.