Recentemente comentei aqui sobre o cinema surrealista e os filmes que são guindados à condição de “cult”. Quero falar hoje de um filme lançado no início deste ano nos cinemas do país e que tive a oportunidade de assistir agora capaz de sintetizar essas duas ideias. Um comentário é necessário fazer-se, de início: parece que Manaus não integra o espaço geográfico do Brasil, pelo menos em se falando de lançamentos de filmes. Claro, estou falando de filmes não necessariamente comerciais, de apelo fácil ao entretenimento. Contudo, o filme que quero comentar até poderia se encaixar nessa “categoria” se não fosse o caso de ser uma obra europeia, sem atores hollywoodianos e sem o marketing de lançamentos.

Na verdade, a dose de surrealismo existente em O Novíssimo Testamento, do belga Jaco Van Dormael, fica pouco além do título e da premissa. O que vemos é uma fascinante combinação de fantasia, lirismo, poesia e sátira. O filme, de 2015, narra a fantástica história: Deus existe, mora em Bruxelas (é, não é brasileiro), é casado e pai de uma filha. Sua esposa é passiva, obediente e não fala nada. A história é narrada do ponto de vista da filha EA, de 10 anos, que nunca saiu de casa e define Deus como alguém entediado, rabugento, cuja diversão principal é “sacanear” com os seres humanos, criando leis e regras que lhes tragam problemas e irritações. Seu “escritório” é uma sala constantemente fechada e de acesso a ninguém mais, onde ele num computador comanda suas maldades. Machista e autoritário, não permite sequer nenhuma contestação, ainda mais da filha pré-adolescente. Um dia, depois de pegar a dica de seu irmão J.C. (olha que sacada!), EA decide dar o troco: aproveita um deslize do pai, entra no computador e manda para a população do mundo mensagens do dia em que cada um irá morrer. Além disso, EA foge de “casa” em busca de novos seis apóstolos para criar o “novíssimo testamento” com novas regras para os homens. Seu pai vai a seu encalço.

Numa mistura do lirismo de Jean-Pierre Jeunot com a fantasia e sarcasmo de Terry Gilliam, o filme demonstra mais uma vez a capacidade de criação e originalidade do diretor Van Dormael já manifestada em suas duas obras anteriores, principalmente Sr. Ninguém (2009). O Deus que ele encarna no filme é um Deus muito próximo daquele que está presente em várias páginas do Antigo Testamento e que muitos preferem não aceitar e, por isso, torcerão o nariz. Mas, Van Dormael não quer mexer diretamente com religião. Nem tão sutil assim, sua intenção parece estabelecer uma metáfora sobre a ordem do dia que assola o mundo: desesperanças, desamor, pessimismo e egocentrismo. Esta fábula cinematográfica nos remete a pensar a necessidade de novos caminhos para a busca da felicidade humana. É uma mistura de diversão e melancolia, advinda da tomada de consciência da inevitabilidade da morte, lembrando às pessoas que a vida não é tão cor-de-rosa.

A busca pelos novos apóstolos de O Novíssimo Testamento é um momento especial. Escolhidos sem critérios são pessoas comuns, cada um com suas próprias percepções da vida agora acentuada pela exata noção da morte, que nos ensinam da importância de aproveitar a vida ao máximo, sem resignação, constrangimentos ou preconceitos. É nesse momento que vemos desfilar na tela uma quantidade de bons atores, destacando-se François Damiens (da ótima comédia A Família Bélier) e a eterna musa Catherine Deneuve, aqui vivendo uma mulher rica que mantém um caso com…um gorila! O filme é assim o tempo todo: brinca com linguagem, com cores, com o surrealismo, com o imaginário.

Por fim, neste pequeno comentário, queria enfatizar uma visível intenção de Van Dormael: este é um filme feminista. Se Deus é o mentor do caos para a humanidade, a figura de sua esposa, Deusa, é a redentora. A partir de sua “insubordinação”, são seus atos intencionais ou não que dão maior leveza, beleza, colorido e sentido à vida das pessoas. Não à toa é a história narrada por uma garota, o amor em novíssimas circunstâncias por iniciativa de uma mulher, o menino que quer ser menina…

Indicado pela Bélgica para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, foi preterido pela Academia. Percorrendo o mundo, o filme mostra-se revelando uma dose certa de fantasia, poesia e leveza, num trabalho que demonstra talento, humor e criatividade abundante do diretor. Como o cinema enfrenta hoje momentos de baixíssima originalidade, é de louvar a existência de realizadores geniais como Van Dormael que acabam por imprimir brilho e luz à magia de assistir cinema. Uma cena memorável, que nos remete à Buñuel: a dança da mão frente à personagem Aurélie. Primorosa! O filme é imperdível; para ver e rever.