Não escondo minha admiração por Martin Scorsese.

Em sua carreira, que já dura cinco décadas, o diretor americano jamais permitiu se congelar em alguns poucos triunfos, procurando sempre se manter à parte, inquieto, original, o que o destaca em relação à brilhante, mas de curto fôlego, geração que emergiu na década de 1970 nos Estados Unidos.

Muito disso se deve ao talento do diretor, mas uma parte ainda mais importante desse processo é o conhecimento enciclopédico, maníaco, que Scorsese tem da história do cinema. Sua coleção particular de filmes, nos rolos originais, é uma das maiores do mundo, e ele está constantemente envolvido em projetos de localização e restauração de obras do início do século passado, o que explica a riqueza de referências e homenagens até em suas obras mais viscerais e anti-acadêmicas (você sabia, por exemplo, que o plano final de Os Bons Companheiros é uma homenagem a um filme mudo de 1903, O Grande Assalto ao Trem?).

Ninguém melhor do que ele, portanto, para comandar um documentário sobre os cem anos do cinema, conclusão a que os executivos do British Film Institute também chegaram, convidando-o para um projeto com esse fim em 1994. A princípio, a obra deveria ser uma apresentação convencional, didática, de filmes e artistas que marcaram o cinema em seu primeiro século de vida, mas o diretor, conhecido pelo estilo pessoal, recusou esse formato.

Em vez disso, Scorsese propôs três programas de 75 minutos, onde ele faria um recorte particular dessa história, centrado sobretudo na figura do diretor, o artista que, desde o início do cinema, comanda o processo de fazer filmes e é a mente criativa capaz de transformar um produto industrial numa obra de arte. O documentário que resultou daí, Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano, ganhou uma luxuosa edição em livro, editada no Brasil pela Cosac Naify, e facilmente encontrado nas seções destinadas ao cinema nas livrarias.

Transcrição do roteiro concebido por Scorsese e Michael Henry Wilson, Uma Viagem Pessoal não é uma história linear. Em primeiro lugar, o filme não é sobre a História, com H maiúsculo, do cinema. Sua narrativa vai dos primeiros anos do século XX, quando visionários como Edwin S. Porter, D. W. Griffith e Charles Chaplin fazem as primeiras tentativas de criar tramas completas e gêneros, como o western e a comédia, até o início dos anos 60, logo antes de Scorsese & companhia empunharem uma câmera. “Eu não me sinto em posição de comentar sobre mim mesmo ou meus contemporâneos”, esclarece.

Sua viagem também não é sobre o cinema mundial, deixando de lado os esforços importantes de nomes como Robert Wiene (O Gabinete do Dr. Caligari), Jean Renoir (A Regra do Jogo) e Marcel Carné (Trágico Amanhecer), entre vários outros, e limitando-se aos diretores nascidos nos Estados Unidos ou emigrados para lá, como Erich Von Stroheim, Alfred Hitchcock e Douglas Sirk.

Por fim, Scorsese, em sua exaltação do diretor, agrupa seus eleitos em três categorias: os ilusionistas, gênios pioneiros que estabeleceram os gêneros e técnicas do cinema, criando a “caligrafia”, por assim dizer, dessa forma de arte – Griffith, John Ford, Busby Berkeley, Hitchcock –, passando em seguida para os contrabandistas, nomes que já pegaram o bonde andando, mas conseguiram definir seus próprios trajetos ao aperfeiçoar os grandes gêneros ou reinar num gênero menor – aqui cabem Fritz Lang, o gênio do noir, Douglas Sirk, o rei do melodrama, e Cecil B. DeMille, dos épicos bíblicos –, e, por fim, aos iconoclastas, diretores que, mesmo trabalhando dentro de Hollywood, conseguiram atacar as convenções sociais e impor visões pessoais e subversivas a projetos comerciais – ninguém mais do que Orson Welles, mas também Nicholas Ray, Elia Kazan e Staney Kubrick.

Além do fascínio que essa história peculiar, “alternativa” do cinema oferece por si, os comentários apaixonados e informativos de Scorsese abrem uma janela única para conhecer os nomes que formaram a psique cinematográfica deste que é um dos grandes mestres do cinema no século passado – o que já seria o bastante para justificar a compra do livro.

Mas a edição atraente da Cosac Naify, com sua composição elegante, o tamanho grande e as páginas repletas de fotografias dos filmes analisados no texto, fazem desta a alternativa ideal para o público brasileiro, já que o filme não existe em edição local desde os tempos do VHS. Tão sui generis – e genial – quanto os melhores filmes do diretor, Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano é um livro indispensável para os amantes do cinema no Brasil.

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