Quando o mago dos quadrinhos Alan Moore e seu ilustrador David Lloyd criaram V de Vingança no começo da década de 1980, o clima político da Inglaterra era pesado e preocupante. Claro, o país era uma democracia, mas o governo direitista da então primeira-ministra Margaret Thatcher era tão conservador e reacionário que o ambiente era opressivo – ela não era chamada de “dama de ferro” à toa. Moore e Lloyd, ao conceber a trama, imaginaram como estaria o país daqui a alguns anos, e a trama de V de Vingança, como uma reação a esse clima repressor, tem coragem de tocar em assuntos e temas complicados – temas estes que sobreviveram, de forma geral, na adaptação para o cinema lançada em 2006.

V de Vingança, o filme, atualiza o contexto, mas ainda se passa numa Inglaterra do futuro, controlada por um governo fascista. No entanto, a população parece acomodada e feliz de ser enganada pela mídia, que claramente veicula notícias falsas e favoráveis ao governo do chanceler Adam Sutler (vivido por John Hurt). Essa situação começa a mudar, no entanto, quando surge o vigilante mascarado V (Hugo Weaving). Vestido de preto, com uma capa e chapéu, armado com punhais e escondendo o rosto com uma máscara do terrorista Guy Fawkes – que tentou explodir o parlamento britânico séculos antes –V, no inicio do filme, salva a jovem Evey Hammond (Natalie Portman) de um ataque na rua. Logo depois, ele a leva para testemunhar seu primeiro atentado: a explosão do prédio histórico do “Old Bailey”.

No dia seguinte, 5 de novembro, V invade a torre de transmissão da TV e veicula sua mensagem, afirmando que “há algo muito errado com o país” e conclamando os cidadãos a presenciarem a explosão do parlamento britânico, daqui a um ano. Na ação que se segue, V é forçado a levar Evey até seu esconderijo subterrâneo, repleto de objetos de arte confiscados pelo governo. A princípio Evey discorda veementemente das ações de V, mas depois passa a ajudá-lo.

Ao mesmo tempo, o detetive Finch (Stephen Rea), encarregado de prender o terrorista, começa a descobrir informações a respeito do passado de V, sobre a terrível história das experiências biológicas do governo contra a população e como Sutler chegou ao poder. Enquanto o próximo 5 de novembro se aproxima, a população aos poucos se rebela contra o governo, adotando a máscara de V como símbolo.

Por trás de V de Vingança estão os (na época) irmãos Wachowski, os mesmos cineastas da trilogia Matrix – desde então, Larry, que formava dupla com seu irmão Andy, fez operação de mudança de sexo e virou Lana Wachowski… Recém-saídos do sucesso da trilogia, em V de Vingança eles apenas produzem e escrevem o roteiro. A direção ficou a cargo de James McTeigue, que foi assistente de direção dos irmãos na trilogia. Por ser um diretor de primeira viagem, McTeigue não se mostra tão cheio de estilo quanto seus mestres, embora as sequências de ação de V sejam bastante parecidas, em tom e forma, com as inesquecíveis lutas e tiroteios de Matrix. McTeigue conta a história sem muitas invencionices e prefere se concentrar nos desempenhos dos atores.

O elenco, exceto por Natalie Portman e Hugo Weaving, é todo composto por grandes atores britânicos, que desempenham seus papeis com perfeição, como de hábito. Stephen Rea expressa de forma contida a angústia do detetive Finch, enquanto John Hurt como Sutler declama suas falas com fúria, praticamente “latindo”. A escalação do ator não deixa de ser irônica, já que Hurt viveu Winston Smith, o rebelde contrário ao governo na versão cinematográfica de 1984 (1984), baseado na obra de George Orwell. E o sempre ótimo Stephen Fry é engraçado e cínico como um produtor de TV. Mas são os dois atores principais que realmente conduzem o filme.

A edição, no inicio, contrapõe as ações de V e Evey, insinuando a futura conexão entre os dois. Portman representa o publico na história. Inicialmente Evey se opõe a V e os dois estabelecem uma relação do tipo “a bela e a fera”. No entanto, ao experimentar “na pele” algumas das táticas usadas pelo governo na população, ela se converte ao ponto de vista do justiceiro mascarado. É essa “conversão” um dos pontos mais polêmicos da história, pois afinal McTeigue e os Wachowskis não tentam simplificar o personagem V. Ele é ao mesmo tempo super-herói e terrorista; quer um mundo melhor, mas também deseja matar aqueles que o fizeram sofrer. É possível existir um “terrorismo heroico”? V é melhor ou pior que o governo tirânico, que mente para a população e faz experiências com imigrantes, homossexuais e indesejáveis? Pode um ato de destruição (no caso, do Parlamento) representar o ponto de partida para uma nova sociedade? São questões que o longa lança ao espectador, e tem a coragem de responder a algumas delas.

Aliás, é interessante notar as atitudes de V. Primeiro, ele se vinga dos responsáveis pelas experiências: um deles é o maior representante da mídia, um daqueles apresentadores que fala alto e se considera dono da verdade – no Brasil conhecemos alguns assim. O outro é um eminente bispo, pedófilo nas horas vagas. Ou seja, seus primeiros alvos representam as instituições que muitas vezes dão suporte a governos totalitários: a mídia e a igreja. Depois, ele basicamente fica quieto e deixa a população agir por si própria – o que nem sempre acaba bem, visto a cena da morte de uma garotinha usando a máscara de V. Ele também cria condições para que seus inimigos dentro do governo se destruam entre si. E ao final se sacrifica, certo de que cumpriu sua missão e o futuro pertencerá à nova sociedade.

Weaving, vale mencionar, é extraordinário no papel, criando um personagem inteligente, ameaçador e até poético, muitas vezes usando apenas sua já conhecida voz, embora ele apareça, sob disfarce, numa cena. Em Matrix (1999) ele era o agente do sistema, em V ele é o super-herói, e não há dúvida: para os cineastas, a figura de V é heroica.

Claro, um herói diferente que diz coisas como “Explodir um prédio pode mudar o mundo” e “O povo não deveria ter medo do governo. O governo é que deveria temer o povo”. Criado num mundo violento, V semeia a revolução para criar uma nova sociedade. Não à toa, o personagem e sua máscara se tornaram um símbolo amplamente usado em protestos nos últimos anos. Do movimento “Ocupar Wall Street” até os tumultos recentes no Brasil, é possível observar a máscara sorridente de V, simbolizando um desejo por mudança. O personagem expõe a revolução como algo bagunçado e violento, mas também reafirma a capacidade do povo de se unir e promover mudanças em sua sociedade. O poder emana do povo, e o governo só o possui porque o povo decidiu cedê-lo a ele. E o povo pode retomar esse poder – essa força pode estar temporariamente adormecida, mas ao ser despertada não pode ser ignorada. Isso aconteceu nas últimas semanas no Brasil, e para onde vamos depois desse despertar só depende de nós. Como o final de V de Vingança, em aberto mas esperançoso, deixa claro.

“O governo deve aprender a temer o povo” parece ser a corajosa mensagem final de V de Vingança, um filme tão perigoso quanto seu material fonte. Alan Moore, o autor, tem aversão à Hollywood e diz nunca ter assistido a nenhum filme baseado em suas obras. Aliás, exigiu que o estúdio produtor do filme, a Warner Bros., removesse seu nome dos créditos, abdicando assim de receber qualquer dinheiro pelo filme. Mas ele sente um orgulho claro ao ver a face de V em protestos por todo o mundo – e a aceitação desse símbolo, meio pop meio subversivo, se deve em grande parte ao filme, um raro exemplo de superprodução com ideias (muitas delas provenientes do livro de Moore) e coragem para dizê-las em voz alta, acompanhadas do som de uma explosão.

Nota: 8,0