Um artigo publicado recentemente no site Movieline, de autoria da jornalista e dramaturga americana Amy Nicholson, vem despertando comentários inflamados da população amazonense, contra o que se julga ser um ataque leviano ao Amazonas Film Festival, ao cinema brasileiro, e, em última análise, a todo o nosso establishment cultural e artístico.

Antes da indignação contra os equívocos do texto (que existem) e a figura da autora, porém, é preciso reconhecer as verdades que esse texto contém.

Vamos a elas:

Amazonas Film Festival

Em seu artigo, Amy relata o período que passou em Manaus, a convite da Secretaria de Estado de Cultura, para acompanhar o Amazonas Film Festival deste ano. Eu também estive lá, na condição de crítico e repórter deste blog, e pude constatar, in loco, algumas das situações observadas. Os artistas convidados, por exemplo, são algo a se refletir.

“Artista”, no Brasil, é uma definição relativa. Ser famoso já é, em alguma medida, ser “artista”. Tirando os ídolos do futebol – uma categoria à parte – qualquer ex-BBB, modelo, ator, músico, encanador, bombeiro, segurança, profissional liberal, desde que sujeito a alguma circunstância de notoriedade, passa logo à ciranda de festas, bailes de debutante, desfiles, comerciais. Torna-se artista – na definição do senso comum. Essa classe de (sub)celebridade não é o foco do Amazonas Film Festival, que procura ser criterioso na escolha do júri e de seu elenco de “famosos”, mas é fato: o AFF precisa de “famosos” para atrair público.

Alguns dos nomes que já passaram pelo Festival são incríveis: Roman Polanski, Alan Parker, Carlos Manga, Fernando Meirelles, Claudia Cardinale, Lima Duarte, Matheus Nachtergaele, Dira Paes, Hermila Guedes. Bem mais do que meros “famosos”, eles são figuras referenciais nas suas áreas, inspiração para vários jovens realizadores no Brasil e no mundo. Mas é muito mais frequente a aparição de astros de novelas, que apenas ocasionalmente – e a toque de caixa – têm presença no cinema nacional. Estes são convocados para formar aquelas aglomerações no Largo São Sebastião – aparecem, recebem a ovação do público e vão embora. Não ficam para ver um filme, não estão interessados na produção local.

Amy cita, desinformada e fora de contexto, a homenagem do ator Igor Cotrim ao diretor Zelito Viana, presidente do júri no AFF deste ano – ele, ao menos, tem presença regular no festival e se engajou, aqui em Manaus, na montagem da peça “Iapinari”, junto ao diretor Luiz Vitalli. A maioria dos “famosos” vem um dia, aproveita as cortesias da organização e sai. Problemas de agenda, mas também – e na maior parte – reflexo do desprestígio com que muitos desses convidados tratam o Festival e a cidade.

Outra iniciativa para tentar popularizar o Festival foi a convocação de alunos do programa Jovem Cidadão, da rede estadual de ensino, para assistir à Mostra Competitiva. Louvável – mas emblemática do desinteresse da maior parte da população. Frequentemente, o que se viu foi uma algazarra incômoda para aqueles que estavam lá tentando, de fato, ver os filmes – risinhos e conversas era fatos rotineiros. Um risco, no entanto, previsível, que poderia ter sido melhor contornado pela organização. Mas é um problema menor. Se um, só um dos garotos tiver saído dali empolgado com a ideia de ver (e fazer) cinema, todo o Festival já terá valido a pena.

Uma ausência lamentável foi a das sessões de filmes no Largo São Sebastião, como havia ocorrido em anos anteriores. Minha sugestão à organização seria o aproveitamento de outra iniciativa bem-sucedida, as cabines de cinema em parques e praças públicas, como já ocorreu na Virada Cultural de Manaus, com filmes populares e entrada gratuita. Acreditamos que seria uma forma eficiente de atrair o público para o universo dos filmes.

Cinema brasileiro

Também são abordados, no artigo, os problemas do cinema brasileiro. A realidade é que essa é uma prática artística com grandes dificuldades no país. Diretores, produtores, atores e técnicos, todos se queixam do quanto é difícil bancar um filme, a despeito da Lei Rouanet, editais públicos e afins. Cinema, no Brasil, é um negócio, não uma indústria – um investimento de risco, muitas vezes a fundo perdido, contra os vastos recursos dos grandes estúdios internacionais, mais a programação engessada das nossas salas de cinema.

O público tem um papel fundamental nessa história. A análise das bilheterias recentes dos filmes brasileiros é a prova definitiva desse desequilíbrio. O último balanço nacional divulgado (estamos em 16/12/2012), aponta que as comédias Até que a Sorte Nos Separe (R$ 32 milhões, com cerca de 3 milhões de espectadores) e E Aí… Comeu? ( 26 milhões, com público de 2 milhões de pessoas).

São números bons para o cinema brasileiro, mas pequenos se comparados com o das maiores bilheterias deste ano, que são Os Vingadores (R$ 130 milhões), A Era do Gelo 4 (R$ 94 milhões) e, em ascensão fulminante, A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2 (R$ 84 milhões).

Sendo que E Aí… Comeu?, que estreou em 22 de junho, e Até que a Sorte Nos Separe, em 5 de outubro, têm, até hoje, sessões diárias no cinema Playarte do Manauara Shopping, bem como em diversas outras cidades do país.

Esses filmes refletem a tendência, que não é exclusividade brasileira, de se privilegiar a comédia em detrimento dos outros gêneros, relegando a bilheterias pífias e sessões especiais as produções mais ousadas, que instigam a reflexão e apostam em temas mais densos e desafiadores. Com isso, todo um potencial criativo do cinema brasileiro depende de anos de esforço para atrair patrocínio, quando não, do apoio de produtoras estrangeiras. O melhor filme nacional deste ano, Xingu, custou quase R$ 16 milhões, tendo arrecadado suados R$ 4 milhões.

Com isso, a consolidação da produção nacional ainda parece algo remoto. Algumas saídas vêm sendo testadas – a lei que cria cotas para filmes brasileiros nos canais a cabo é a mais recente – mas o problema maior é mesmo o interesse do público, que não parece disposto a apreciar obras mais sérias. Temos muito a perder com isso – nosso cinema vai continuar sendo um anexo da televisão, um arremedo perto da produção vigorosa de, por exemplo, Argentina ou México.

Ao fim e ao cabo, o artigo de Amy usa de um wit bobinho e de uma capacidade limitada de apreender os acontecimentos – as várias referências a Anaconda e Fitzcarraldo não me parecem clever ou cool, apenas silly. O Festival é um evento que, não sendo, obviamente, perfeito, tem posto Manaus no calendário de cinema nacional, além de dar um grande impulso à produção local. A Floresta de Jonathas, de Sérgio Andrade, o primeiro longa produzido no Amazonas, com diretor e equipe locais, não existiria sem esse evento – o qual esperamos que cresça e venha a se tornar uma grande referência no cenário nacional.