Na busca por reafirmar sua força no mercado, a Netflix continua divulgando números impressionantes sobre a audiência de suas produções. Conforme anunciado pelo streaming, “Bird Box” somou mais de 80 milhões de visualizações em menos de um mês, enquanto “Você”, acumulou 40 milhões de espectadores nas primeiras quatro semanas de exibição. Mesmo sem maiores detalhes sobre a soma desta quantidade, o desempenho é bem diferente da estreia morna que o seriado obteve no canal americano Lifetime – o episódio de maior audiência não chegou a somar 1 milhão de espectadores simultâneos. Essa contagem expressiva evidencia uma trama atual, de fácil diálogo com seu público e que possui um debate relevante para além das multitelas.

“Você” inicia quando a aspirante a escritora, Guinevere Beck (Elizabeth Lail) entra na livraria em que Joe Goldberg (Penn Badgley) trabalha. O primeiro encontro entre os dois é suficiente para o jovem criar interesse na moça e persegui-la buscando uma aproximação. Assim, os meios que ele utiliza para conhecer Beck ilustram um comportamento alarmante sobre si, mostrando a construção de um relacionamento problemático e abusivo no decorrer da temporada, intensificando-se a cada nova descoberta sobre a escritora.

Com o objetivo de focar na relação conturbada (a qual trato mais adiante), os roteiros da série surpreendem ao dar visibilidade a temas correlatos a trama principal de forma sutil e eficiente. Assédio e bullying no ambiente universitário, violência contra mulher e alcoolismo ganham destaque a partir de capítulos da vida de Beck, o que, além de fazer um alerta para seu público, também ajuda na construção da personagem e no entendimento de suas motivações. Essas narrativas se mostram muito mais eficazes do que a problemática familiar envolvendo o personagem de Penn Badgley, já utilizada como argumento em diversas outras produções.

Assim como a escritora, Joe também possui uma construção completa, a qual torna excessivamente boa suas justificativas – uma característica ótima se não estivéssemos falando sobre esta série em particular. Mesmo com toda tendência a um comportamento bizarro, o sujeito também apresenta ações boas e humanas, tornando o personagem mais complexo e interessante, capaz de carregar grande parte da trama por si só. A própria atuação de Badgley colabora muito para isso: o ator, conhecido por seu papel como Dan Humphrey em “Gossip Girl” mergulha fundo na intenção de apresentar um personagem sombrio, carregando esta característica até mesmo no seu tom de voz.

Além disso, a própria caracterização de Joe destoa totalmente dos outros personagem de “Você”. Suas roupas não são apenas mais modestas do que o elenco em geral, como também mais sóbrias, assim como a livraria na qual trabalha e seu próprio apartamento. Fatores esses aproveitados pela direção de fotografia competente em captar a personalidade conflitante de Joe e em ressaltar elementos que questionem sua percepção dos acontecimentos.

Com um ritmo constante, a série possui uma narrativa basicamente intuitiva e uma trajetória bem distribuída entre seus episódios. Mesmo quando a trama apresenta sinais de cansaço lá pelo sétimo episódio, uma nova reviravolta torna a história interessante novamente, apresentando um sentido de urgência como nos capítulos iniciais. Em contrapartida, as cenas românticas se estendem vagarosamente, embaladas por uma trilha sonora igualmente paciente, que faz até o espectador esquecer o cenário da agitada e barulhenta Nova York.

Assim, a narrativa e beleza de algumas cenas tentam tornar disfarçar furos e argumentos falhos para que a história avance mais naturalmente. Colaborando com este objetivo, o elenco da série consegue driblar as adversidades e mesmo atitudes previsíveis que o roteiro impõe, exagerando em cenas mais sombrias e preocupantes. Afinal, além de Badgley, a atriz Shay Mitchell no papel da amiga Peach Salinger também consegue melhorar o tom das cenas de conflito com Joe, deixando de lado a tendência de infantilizar a relação de ódio entre os dois. Para além destes, o veterano de seriados, John Stamos (“Full House”) é também uma grata surpresa ao ser visto em um papel mais sério.


O grande problema de “Você”

Como toda série e filme atual, a reflexão de “Você” não acaba em seu último capítulo, pois, questionamentos e comentários sobre a produção permeiam as redes sociais. Neste meio, um debate em particular sobre a romantização do relacionamento abusivo presente na trama tem envolvido espectadores com direito a pronunciamentos de integrantes do próprio elenco. Isso ocorre principalmente devido a construção do relacionamento entre Joe e Beck, o qual desde o início mostra o jovem perseguindo a escritora e condicionando a vida desta para que fique mais próxima dele, caracterizando uma relação tóxica com a justificativa de Joe ser uma boa pessoa para Beck, mesmo sem ela o conhecer totalmente.

Desde o primeiro capítulo, a voz do personagem narra todos acontecimentos de “Você”: em certo episódio, ouvimos Beck, o que se mostrou uma ótima escolha, porém, minutos depois o foco narrativo volta a ser de Joe. Assim, ao ver a história de seu ponto de vista, esta é também a ótica pela qual o público é apresentado aos acontecimentos, tornando muito fácil seguir o julgamento que Joe tem sobre si mesmo ao em vez de questionar suas atitudes e como a outra parte do relacionamento interpretaria suas ações.

Afinal, além de comportamentos mais usuais dos relacionamentos abusivos como invasão de privacidade e manipulação, Joe também comete crimes como cárcere privado, invasão de propriedade e assassinato – todos com a desculpa de ser um homem apaixonado. Em diversos momentos da trama, ele também ganha espécies de “compensações” por suas atitudes, o que o incentiva a ir em frente. Para completar esse cenário de ilegalidades e consecutivas atitudes erradas, Joe não paga por seus atos ao final da primeira temporada, ele não é julgado ou descoberto por alguém que possa denunciá-lo, nem mesmo em sua consciência, ele apresenta sinais de arrependimento ou questionamentos sobre sua identidade.

Apesar do julgamento próprio a ser realizado pelo público e sua determinação sobre o relacionamento de Beck e Joe ser abusivo ou não, “Você” é o primeiro ponto a sair em defesa do personagem. Isto fica claro na entrevista da showrunner do seriado, Sera Gamble, para a revista LifeTime, na qual ela afirma que já tinha noção sobre qual seria o julgamento do público sobre a trama:

“Se você acabou de presenciar um momento fofo em uma livraria, vai querer que eles fiquem juntos. Se você os vê juntos na primeira cena, vai querer que eles fiquem juntos, mesmo depois de ver o que Joe está fazendo”, disse a criadora da série.

A impressão passada é de que a série possui a ambição de debater as especificidades de um relacionamento abusivo, porém, não consegue entregar a dimensão devida para as atrocidades cometidas pelo protagonista. Caso bem explorado, este poderia ser um grande ponto para “Você” e um marco para seu público, pois, ao se dirigir para os jovens e adolescentes o ideal seria enfatizar a problemática do comportamento de Joe e o distanciamento necessário do tipo de figura da vida real que este representa.

Mesmo a série terminando de forma bem sugestiva e tendo a segunda temporada confirmada, é bem difícil considerar a sua continuação devido a maior parte dos personagens ter se afastado de Joe e da trama central. Porém, o sucesso da série no streaming deve garantir uma continuação para, ao menos, mais duas temporadas sobre a história de Joe que, apesar de ser apresentada com bons fatores e possuir a ajuda de um ótimo elenco, peca em passar a sua mensagem principal e em dimensionar quão prejudicial é um relacionamento abusivo.