Estrada. Perder-se de si próprio e, no caminho, se reencontrar. Em trânsito.

Metáforas de viagem e de busca por algo maior do que a vida diária, comezinha, sem cor, são a marca dos filmes de Walter Salles Jr., diretor brasileiro que, sem exagero, colocou o cinema nacional nos trilhos após a sua quase extinção.

Nascido em 1956 no Rio de Janeiro, filho do banqueiro Walter Moreira Salles e da diplomata Elisa Gonçalves, o futuro cineasta deve à criação privilegiada o cacife para conseguir se lançar à aventura fazer cinema, num país cuja produção, no início dos anos 1990, havia sido literalmente atrofiada.

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Os menores de 30 anos não fazem ideia do pesadelo que era o cinema nacional na virada dos anos 1980 para os 90. A Embrafilme, empresa pública criada pela ditadura militar para comandar a produção local, era tocada na base do coleguismo, com fundos cada vez mais minguados e nenhum – absolutamente nenhum – filme relevante em décadas. A exceção, o heroico Pixote: A Lei do Mais Fraco (1988), foi mérito isolado do talento do diretor Hector Babenco e sua equipe, e ainda assim padecendo da precariedade técnica que era de rigueur no período.

O grosso dessa produção equivocada, tosca, pode ser visto nas sessões da madrugada do Canal Brasil – confira como o nosso cinema dito “sério” havia chegado ao ponto do ridículo. Ainda assim, tínhamos filmes. A chegada de Fernando Collor de Mello, em 1989, fez a situação degenerar de vez. O ex-presidente, conhecido, entre outras coisas, por confiscar as poupanças de milhares de trabalhadores brasileiros, extinguiu a Embrafilme em 1990, encerrando – a palavra é essa –a produção nacional. Entre aquele ano e 1995, quando a estabilidade econômica e as leis de incentivo permitiram o retorno, tímido, do cinema brasileiro, apenas um filme relevante foi feito por um diretor local. Um filme de Walter Salles.

O começo

Até chegar a fazer filmes, porém, Walter Salles partiu, ele próprio, em busca de si mesmo. Criado na ponte Brasil-Estados Unidos, num período difícil para a maioria dos brasileiros, Salles tentou uma carreira no automobilismo (!) e na economia antes de se dedicar aos filmes. Piloto de kart na juventude – um sonho de longa data, que o levaria, em 2008, a competir profissionalmente na Fórmula GT-3 –, ele revelou igual talento e imaginação na condução de câmeras e atores.

O ambiente familiar dos Salles parece ter estimulado essas paixões – seu irmão, João Moreira Salles, e o meio-irmão, Fernando Roberto, também têm trabalhos importantes no cinema nacional, especialmente o primeiro, autor de documentários excepcionais, como Santiago (2006), Notícias de uma Guerra Particular (1999) e Nelson Freire (2003). Mas Walter, o irmão do meio, largou na frente.

Após cursar economia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Salles partiu para a Califórnia para fazer um mestrado em comunicação. Desse período, marcado por documentários para a televisão europeia, o diretor voltou com os contatos e a expertise necessários para rodar o primeiro filme brasileiro pós-Embrafilme.

Mesmo com todos os maneirismos de um trabalho de iniciante, A Grande Arte (1992) traz sinais promissores da futura carreira de Walter Salles. A fotografia elaborada, a montagem elegante e a cuidadosa direção de atores, mesmo com a mise-en-scène­ excessivamente teatral – à exceção de uma irrepreensível Giulia Gam –, compõem um produto irregular, mas bem mais interessante que o cinema brasileiro da época anterior. Em sua estreia, o filme foi noticiado como uma das produções mais caras já feitas no país – cinco milhões de dólares, um valor ainda vultoso para os padrões nacionais. Mesmo assim, tendo sido rodado em inglês e com uma trama problemática, apesar da assinatura do mestre Rubem Fonseca, o filme não decolou. A experiência, porém, ajudou Salles a descobrir sua verdadeira vocação.

Os filmes da retomada

Os filmes da retomada de Walter Salles

O período entre 1995, ano de Carlota Joaquina – Princesa do Brazil, de Carla Camurati – o primeiro filme brasileiro de facto desde a era Collor –, e 2002, quando Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, torna-se um sucesso sem precedentes no cinema nacional, é conhecido por historiadores como “retomada”.

Pouco a pouco, os talentos locais voltam a querer fazer filmes, a leis de incentivo se consolidam, e o país experimenta, aos poucos, a chegada da profissionalização à produção nacional. Os filmes mais importantes dessa época são, sem dúvida, os de Walter Salles, o primeiro diretor brasileiro desde Glauber Rocha a encantar o mundo do cinema mundial e conquistar algumas de suas premiações mais importantes.

Engana-se, porém, quem pensa que esse período é marcado apenas pela consagração. Pelo contrário. Cinema, no Brasil, era uma profissão de alto risco – ainda é –, e Salles se viu em diversas encruzilhadas profissionais, exasperado pela falta de gente qualificada e encorajamento para novas produções no país. Apesar disso, seus filmes entre 1995 e 2002 mostram a construção de uma das mais bem-sucedidas trajetórias do cinema brasileiro.

Terra Estrangeira (1995) inaugura esse período com uma proposta estética ousada. Dirigido em parceria com Daniela Thomas, o filme foi rodado num desafiador preto-e-branco, e não faz qualquer concessão ao gosto do grande público. Entremeando feridas recentes do país – o fim da ditadura, o confisco da poupança por Collor – à trajetória de fuga e reencontro vivida por Paco (Fernando Alves Pinto, de Dois Coelhos) e Álex (Fernanda Torres) em Portugal, o filme é o verdadeiro começo de Walter Salles, trazendo vários temas que viriam a se tornar marcas registradas da sua obra: a estética road movie, a trama sobre jornadas pessoais, as preocupações políticas e sociais e, principalmente, o olhar, entre terno e desiludido, sobre os rumos do Brasil redemocratizado. Sofrendo, mais uma vez, de teatralidade nas atuações e diálogos, mas com um novo nível de equilíbrio no trabalho da equipe técnica, Terra Estrangeira se justifica em seus próprios termos, e até hoje continua um trabalho interessante de se assistir.

Foi em 1998, porém, que o país assistiu satisfeito à conquista da fama mundial por Salles. Central do Brasil, desse ano, é de fato o maior emblema da retomada, com sua trama delicada (escrita pelo hoje noveleiro João Emanuel Carneiro, de Avenida Brasil), a parte técnica irretocável e o jogo comovente entre Fernanda Montenegro e o estreante Vinícius de Oliveira. Salles aqui mergulha no universo da cultura popular brasileira, dos excluídos da metrópole até as comunidades arcaicas, quase primitivas, do Nordeste profundo. Na jornada, que une a ex-professora Dora (Montenegro) e o órfão Josué (Oliveira) na busca pelo pai deste, o diretor faz um retrato sutil e fascinante da convivência entre atraso e desejo de progresso no país, com doses de lirismo e humor. Fernanda foi indicada por sua atuação ao Oscar de Melhor Atriz do ano seguinte, assim como Central concorreu a Melhor Filme. Em retrospecto, a derrota de ambos para Gwyneth Paltrow (por Shakespeare Apaixonado) e A Vida é Bela, de Roberto Benigni, é vista como uma das maiores injustiças na história da premiação. Se serve de consolo, nunca, nem mesmo com Cidade de Deus, chegamos tão perto da estatueta.

O filme seguinte do diretor, lançado no mesmo ano, é o amargo O Primeiro Dia. Parte de um projeto para a televisão francesa, a obra intercala as histórias de um grupo de personagens cujas trajetórias atingem seu clímax na véspera do Ano Novo. Renovando a parceria com Daniela Thomas, e no auge do domínio técnico, o diretor faz mais um retrato sensível (e pessimista) da busca de seus personagens por redenção.

Encerrando a fase “retomada” de Walter Salles, o magnífico Abril Despedaçado (2001) insufla vida ao melancólico romance do escritor albanês Ismail Kadaré, com bem-vindas liberdades: a trama original, ambientada na Albânia pré-Segunda Guerra, é transplantada para o sertão brasileiro do início do século passado, e passa a tratar não de um solitário protagonista, mas de dois irmãos: Tonho (Rodrigo Santoro) e Pacu (Ravi Ramos Lacerda, outra ótima descoberta do diretor) são os últimos membros jovens de um clã engajado há gerações numa disputa de morte com uma família rival. Buscando transcender esse ciclo brutal e atávico, eles enfrentam uma jornada de ruptura e sacrifício, que lhes cobrará um preço alto ao final da viagem.

Mais um mergulho, agora num registro sombrio, pelo Nordeste brasileiro, Abril é novamente um triunfo de Salles. Sua cena final serve de metáfora para a carreira do diretor, agora prestes a atravessar o grande oceano.

A consagração internacional

Filmes internacionais de Walter Salles

Diante da escalada de grandes obras do diretor, o mercado internacional abriu as portas para Salles, outro feito raro e, até então, só alcançado por Glauber e Pixote. Inserido numa espécie de “frente” de diretores latino-americanos, como Alfonso Cuarón (…E Sua Mãe Também) e Alejandro González Iñarritú (Amores Brutos), que começavam a se destacar no cenário mundial, Salles escolheu um projeto que falava alto a sua sensibilidade estética e humana.

O melhor trabalho de Walter Salles, na opinião deste escriba, Diários de Motocicleta (2004) agrega, um nível além, todos os elementos marcantes na obra do diretor: o estilo road movie é depurado à perfeição, ganhando pungência extra com o retrato das aventuras de um jovem e, até então, imaculado Che Guevara; a trama percorre uma extraordinária paisagem geográfica e humana, revelando, através da fotografia de Eric Gautier, a riqueza escondida nos rincões profundos da América do Sul; as atuações, desde os protagonistas Gael García Bernal e Rodrigo de la Serna até as menores pontas, são todas ricamente trabalhadas; a música, um elemento central na estética walteriana, ganha temas estupendos do compositor Gustavo Santaolalla e do cantor Jorge Drexler. E até o obstáculo da interpretação política é superado com elegância pelo diretor, que se concentra nos anos de formação, e não nos feitos mais momentosos e controversos de seu protagonista.

Ao lado de Central, o filme é a obra mais importante e bem recebida de Walter Salles, e parecia marcar o início de uma brilhante carreira global para o diretor. Pero, não foi bem assim.

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Embora continue um grande diretor, provavelmente o maior do Brasil, ao lado de Fernando Meirelles, Cao Hamburger e José Padilha, Walter Salles não nos deu, desde então, a mesma média extraordinária alcançada entre Central do Brasil e Diários de Motocicleta. Sua primeira incursão hollywoodiana, o pouco assustador thriller Água Negra (2005), foi um passo em falso e uma escolha questionável do diretor, que talvez quisesse se testar no sistema dos grandes estúdios americanos. Embora traga um gostinho daquela centelha poética típica dos seus melhores trabalhos, o gênero “susto” simplesmente não combina com a sensibilidade do cineasta. Seus dois filmes seguintes são bem melhores, embora, ainda assim, tenham equivalentes superiores nos seus respectivos formatos.

Linha de Passe (2008) mistura a análise da miséria vista em Central do Brasil às tramas paralelas de O Primeiro Dia, sem alcançar a mesma voltagem dos dois. Nova parceria com Daniela Thomas, o filme narra o dia-a-dia de uma família da periferia de São Paulo, às voltas com ambições frustradas e a ausência de perspectivas. Com um trabalho brilhante do elenco, sobretudo Sandra Corveloni, como a chefe da família, Cleusa, e José Geraldo Rodrigues, como o frentista Dinho, além de marcar a volta de Vinícius de Oliveira, Linha de Passe, ainda assim, se perde numa linha ideológica, de relações sociais esquemáticas, forçadas, contrapondo a pobreza vitimizada à classe alta vilanizada. Uma pena que o trabalho sensível dos atores não consiga transcender esse painel, embora o filme tenha acumulado prêmios importantes, como o troféu de Melhor Atuação em Cannes para Sandra.

Já o trabalho mais recente do diretor, On the Road – Na Estrada, de 2012, teve uma sorte melhor. Adaptação do grandioso romance de Jack Kerouac, que desde o lançamento em 1957 inspirou centenas de viagens similares de autoconhecimento e experiências de vida, sem falar nos movimentos contraculturais que surgiram em seu encalço, o filme tem o mérito de ser fiel à sua origem, isto é, consegue ser inspirador à sua maneira, além de reproduzir à perfeição as idas e vindas dos protagonistas Sal Paradise (Sam Riley) e Dean Moriarty (Garrett Hedlund) pelas estradas americanas no pós-Guerra. Mesmo assim, confesso que o filme não traz o mesmo impacto, a mesma sensação de frescor e descoberta das andanças de Che Guevara em Diários de Motocicleta. A constatação é ainda mais frustrante pelo fato de a história ser o road movie por excelência, o tipo de trama talhado para ser transfigurado em imagens por Walter Salles. Ainda assim, o filme é uma experiência recompensadora, e vale muito a conferida.

Outros projetos

Uma prática comum de Walter Salles tem sido intercalar os grandes longas-metragens com a realização de curtas e documentários. Enquanto o novo projeto do diretor segue no plano da incógnita, uma ótima janela para se conhecer a formação da estética e sensibilidade do artista são os seus documentários, que focam sobretudo em personalidades da arte, do pioneiro Chico, ou o País da Delicadeza Perdida (1989), perfil do compositor Chico Buarque para a TV francesa, ao recente Jia Zhang-ke, o Homem de Fenyang (2014), apresentado há poucas semanas no Festival de São Paulo. Tendo construído uma das carreiras mais longas e versáteis do cinema nacional, e sem dar mostras de arrefecimento em sua vontade de continuar fazendo filmes poéticos, idealistas, amargos, questionadores, políticos, líricos – múltiplos –, nós só temos a agradecer pela ventura de, lá atrás, um jovem estudante de economia ter arriscado seu dinheiro e sua reputação nesta jornada imprevisível que é fazer cinema no Brasil. Nós, do Cine SET, e todo o cinema brasileiro ficamos lhe devendo essa, Walter.