Acompanhar a recepção de público e crítica a Zodíaco, o sexto trabalho de David Fincher, lançado em março de 2007, foi uma chance de presenciar algo raro: um filme excelente tendo uma acolhida modesta, quase indiferente, pela simples razão de que as obras anteriores do diretor eram ainda mais superlativas. Certamente, algo difícil de presenciar na geração atual de cineastas.

Mas sejamos justos: David Fincher é uma figura sui generis até entre seus pares. Nascido em 1962 nos Estados Unidos, o diretor era maníaco (o adjetivo vem bem ao caso) pelas imagens em movimento desde a infância. Com 21 anos, o talento para a fotografia e sua disposição incomum o levaram a ser contratado pela Industrial Light & Magic, empresa de efeitos especiais de George Lucas, onde Fincher criou engenhocas para filmes como O Retorno de Jedi e Indiana Jones e o Templo da Perdição.

Sua ascensão foi rápida. Um comercial para a Propaganda Films (empresa que é um verdadeiro celeiro de grandes cineastas, tendo lançado nomes como Spike Lee, Michel Gondry e Spike Jonze) com a imagem indelével de um feto fumando um cigarro – era um ad para a American Cancer Society – o catapultou para a fama, e o resto, como dizem, é história.

Entre comerciais e clipes, alguns deles antológicos, como “Freedom ‘90”, de George Michael, e “Vogue”, de Madonna, Fincher galgaria o pódio de Hollywood de forma fulminante – certamente, mais rápido do que tentar ler o título brasileiro de seu segundo filme, Se7en – Os Sete Crimes Capitais.

Todo esse preâmbulo serve para colocar em contexto a nova fase de David Fincher inaugurada, claro, por Zodíaco. O filme era o primeiro policial do diretor desde o magistral Se7en, e bastou o anúncio de sua produção para que uma onda colossal de expectativas se formasse em Hollywood. Mais do que dos seus colegas de geração – e inclua aí gente de respeito, como Quentin Tarantino, Spike Lee e Oliver Stone –, o estilo frenético e meticuloso do diretor se encaixava à perfeição no gênero. Pois Zodíaco iria bagunçar essa noção.

Em decidida oposição a Se7en, que também narrava a caça a um psicopata, Zodíaco é uma obra intimista, de poucos acontecimentos e muita atmosfera. O filme também trazia, pela primeira vez na carreira de Fincher, uma história real, que o diretor conheceu – como se diz mesmo? – “na pele”: em criança, David morou no condado de Marin, na Califórnia, próximo de onde o Zodíaco cometeu seus primeiros assassinatos. Entre as ameaças do psicopata à época, estava a de atacar um ônibus escolar, atirando nas crianças do alto de um prédio. O fato aterrorizou o menino por anos a fio, criando uma presença palpável de pura maldade – “o bicho-papão definitivo” – na imaginação do diretor.

A história também tinha atrativos adicionais: a verdadeira identidade do assassino nunca foi descoberta, e quem chegou mais próximo dela não foi um policial, mas um… cartunista? Sim, isso mesmo. Robert Graysmith (vivido por Jake Gyllenhal no filme) era chargista do San Francisco Chronicle em 1969, quando ocorreu a primeira morte, e estava na redação na chegada da primeira carta do psicopata.

A identidade elusiva do serial killer, o jogo de gato e rato com a polícia, novas mortes, tudo isso detonaria uma verdadeira obsessão no desenhista, e ele empenharia décadas e um casamento feliz na tentativa de elucidar o mistério. Suas conclusões viraram livro em 1986, e atraíram tanto Fincher quanto o roteirista James Vanderbilt.

O projeto, no entanto, cozinharia por quase duas décadas, devido a complicações na compra dos direitos e outros compromissos do diretor. Custou a sair – mas, quando isso finalmente aconteceu, a espera valeu a pena: Zodíaco é o único, entre os filmes da nova fase, digno de figurar entre as grandes obras do cineasta, ou seja, Se7en e Clube da Luta. Numa nota pessoal, arrisco dizer que este é o meu filme favorito de Fincher, ainda mais perfeito que os outros dois, e com o apelo adicional de poder ser considerado um dos melhores filmes sobre jornalismo já feitos.

Sim, porque – e aqui está a diferença crucial entre Zodíaco e Se7en – a obra é toda construída sobre a luta árdua, minuciosa, para tentar desvendar a identidade do assassino. Longe do frenesi da caçada a John Doe, o filme gasta suas quase três horas em diálogos intrincados, pistas falsas e momentos de quase-descoberta – para então tudo desmoronar, e o quebra-cabeças precisar ser refeito mais uma vez. Igual ao trabalho de um policial – ou de um jornalista, ambos mediando rumores e contradições na busca pela verdade dos fatos.

Mas não pense, por isso, que o filme é chato. Muito pelo contrário. Fincher nos engaja na obsessão de Graysmith, nos faz compartilhar a mesma ansiedade com cada pequeno passo à frente, imprime o terror das aparições do psicopata, e, em meio a tudo isso, cria um painel histórico brilhante, irretocável.

Com uma fotografia e direção de arte que prestam tributo a grandes filmes dos anos 1970 – nenhum mais que Todos os Homens do Presidente (1976), inspiração confessa de Fincher para o filme –, mais as participações impecáveis de Mark Ruffalo, Robert Downey Jr., Elias Koteas e John Carroll Lynch, magnífico como o principal suspeito, Zodíaco seria considerado um triunfo, um career high irrepetível na obra de qualquer outro artista. Mas calhou que o diretor era David Fincher. Dê uma chance a Zodíaco. Você não vai se arrepender.

 Nota: 9,5