Esse ano relembramos os 10 anos de um dos memoráveis filmes da história cinematográfica brasileira: Tropa de Elite. O filme auxiliou a dar visibilidade internacional a José Padilha e Wagner Moura, além de alavancar a carreira de outros envolvidos na produção.

Conquistando o Urso de Ouro de Melhor filme no Festival de Berlim 2008, Tropa de Elite se tornou um daqueles filmes que consegue arrastar um bom público para assisti-lo, não apenas por ser um filme de gênero, mas também por retratar um país tão cotidiano e esquecido. A obra de José Padilha conseguiu trazer ao grande público algo que sempre esteve ali gritando, mas que era silenciado pelas pautas de saúde, educação, transporte, moradia. Estamos falando de segurança pública.

Padilha nos transporta para dentro de um dos vieses da guerra do tráfico: o policiamento. Por meio da estrutura narrativa encontrada em Tropa de Elite, é interposta a visão que o policial tem sobre seu ofício, ao mesmo tempo entende-se que não há vilões e mocinhos, o mundo não é maniqueísta e o “mal” pode estar sob a pele de quem acredita que dessa forma esteja fazendo o “bem”, mesmo que o benefício a si seja a prioridade frente a real questão da segurança. Tomando esse pressuposto, a primeira impressão que o filme traz é de choque. Mesmo dez anos após seu lançamento, o choque ainda é provocado pela projeção. A apologia a violência delineada sob o prisma do tratamento da polícia as comunidades é algo que gera incomodo e polêmica pela própria natureza irregular que se apresenta, mas se naquela época era nauseante, hoje não se faz diferente.

Há algumas semanas, o Rio de Janeiro encontrou-se em zona de guerra devido a situação na Rocinha, frequentemente nos jornais há notícias criminais envolvendo essas comunidades, o que acaba por tornar Tropa de Elite um filme atemporal. A maneira com a película se refere à configuração do tráfico, das milícias, à penetração disso na política e ao nível da corrupção nas polícias, não passou por melhoras nos últimos 10 anos, pelo contrário, tem alimentado uma situação catastrófica de valores semelhantes aos encontrados nos conflitos no Oriente Médio. E então entram temáticas que envolvem e absorvem esse sistema que é impresso na obra, isto se evidencia ao tomarmos seus personagens que se revertem sob peças extremistas: corrupção e honestidade.

O filme reflete uma vívida realidade da Polícia Militar, mas que no Brasil de 2017 tornou-se uma reflexão de um estado geral que a nação se encontra, a da corrupção generalizada. Os políticos, escolhidos pela população democraticamente, parecem ir ao sentido oposto das necessidades de quem os colocou lá, assim, como o grupo apresentado da Polícia Militar, encontram-se imersos e envolvidos em todas as espécies de crime, tráfico de drogas, de armas, prostituição, jogos do bicho e caça-níqueis e mais outros negócios em que se meteram. A corrupção brasileira acontece em níveis inimagináveis, alarmantes e preocupantes. É um organismo que quanto mais parece perto de ser mapeado, mais profundo e cabuloso se torna.

Nesse desnível social, assim como a população do morro da Babilônia, apresentado na trama, a população brasileira que ia para as ruas junto com patinho, batia panela, vestia a camisa verde-amarela de uma seleção esportiva que também estava envolvida em escândalos de corrupção, parece calar-se, silenciar e se esconder por trás dos muros e das flechas que são apenas atiradas em suas redes sociais. A reclamação e as ações do povo terminam ai. Como diria um certo meme, a população se tornou ativista de telão. É inevitável pensar que pessoas reclamam do atual governo, mas se tivessem a chance de escolher um novo governante cometeriam os mesmo erros. Vide as escolhas nas eleições suplementares.

Nesse âmbito, a hipocrisia e a pretensão tomam força. Como o próprio Capitão Nascimento questiona na obra, há serviço social dentro do tráfico? Isto se aplica no grupo que monta a ONG na comunidade e apesar de realizarem um trabalho interessante, serve de fachada para alimentarem o funcionamento do esquema e aumentarem a rota das drogas. Estudos e estatísticas apontam que a comércio e consumo de drogas é tão forte no “asfalto” quanto nas comunidades onde se localizam os chefes do tráfico.

O consumo começa de formas simples, com um back – como cita Martins (André Ramiro), e pode trazer tantas sensações quanto um litrão ou um maço de cigarros. Mas é esse baseado que atua na base da cadeia alimentar que prospera e alimenta o tráfico. O filme não se aprofunde nisso e a sociedade contemporânea também não. E esse é o tipo de discussão que até hoje é vista como tabu diante dos nossos representantes no Congresso que preferem continuar sem trazer a discussão em torno da criminalização do uso de certas drogas. E ano após ano os protestos em cima da temática se tornam mais nulos, visto a formação das bancadas e o posicionamento da mídia e da população. Enquanto isso, uma parcela significativa das classes média e alta continua alimentando o tráfico e o criticando veementemente nos instrumentos que tem as mãos.

Trabalhando com esses paradoxos, Padilha aborda de maneira eficiente o funcionamento da polícia como um organismo/sistema vivo. De um lado há a polícia corrupta e que vê no crime uma forma de lhe dar status, prazer, reconhecimento e dinheiro, do outro há os policiais que não agradam-se do esquema, mas não são influentes o suficiente para acabar com ele. Isto é personificado pelo BOPE. Mas esta pouca influência para exterminar a corrupção sistêmica e o fato de serem contra ela, não os configura como mocinhos idealizados da literatura romântica. Como se fossem organizações distintas, mas com objetivos próximos o BOPE falha por cair na ilegalidade com torturas e assassinatos. Fatos que ainda se configuram no presente e que apontam o despreparo e a o quanto estamos desprotegidos pelo Estado. A segurança é um dos itens que compõe a Declaração de Direitos Humanos da ONU, mas que se torna cada vez mais ameaçada, principalmente por aqueles que foram escolhidos pela população para a tarefa. É tal despreparo que desabilita UPPs, cria milícias, esquadrão da morte e que impede crianças de irem a escola por estarem reféns da guerrilha do tráfico.

Diante da situação exposta na obra e que se mantém contemporânea a nós, o Brasil é um país de desigualdades, em que o Estado corrupto consegue aterrorizar mais do que o tráfico. A corrupção tão fortemente enraizada no país gera um lamaçal que dificilmente sairá o país nos próximos anos. E quanto mais camadas são descobertas, mas o jogo se torna sujo e alcançando esferas maiores e atingindo com mais impacto a população que assim como na guerra do tráfico é a principal vítima. Será que daqui 20 anos Tropa de Elite continuará fazendo esse diálogo com o Brasil? Ou ela finalmente conseguirá pegar cada um de nós e moldar a população assim como Capitão Nascimento fez a Martins?

Os próximos anos dirão.