Curtas-metragens são um formato essencial ao cinema. Seja com baixo ou alto orçamento, seja com duração de um ou trinta minutos, o desafio é o mesmo: mostrar que é possível contar uma boa história dentro de uma curta duração, lidando com um processo similar ao de um longa-metragem. Nesse sentido, curtas são sempre um bom aprendizado para quem começa a se arriscar por trás das câmeras. John Lasseter, responsável pelos dois primeiros Toy Story e, hoje, o homem por trás dos estúdios Disney, por exemplo, gosta de frisar em entrevistas o quanto os curtas que ele produziu o ajudaram a amadurecer como diretor, animador e roteirista.

Além disso, a produção de um curta-metragem geralmente oferece ao diretor uma liberdade maior para experimentar, sem restrições artísticas ou comerciais. Ainda mais quando consideramos as facilidades de produção e exibição de hoje em dia: basta pegar uma câmera e depois jogar o resultado no Youtube. Evidentemente, não é qualquer vídeo postado por aí que vai se tornar uma nova obra-prima. Por isso, o Cine Set hoje lista dez curtas-metragens brasileiros que se destacam pela sua qualidade. A lista está em ordem alfabética, e a ideia foi abordar títulos com temas e gêneros diversos, além de formatos diferentes, como animações e experimentais, todos produzidos na última década. Confira!

1. O Código Tarantino (2006), de 300ML

A dupla de diretores cariocas que atende simplesmente pela alcunha de 300ML começou a trilhar sua carreira em campanhas publicitárias premiadas, como um comercial feito para o Discovery Channel vencedor do Leão de Bronze em Cannes. Em sua primeira incursão no cinema, o duo homenageia a obra de Quentin Tarantino, colocando Seu Jorge e Selton Mello numa conversa de mesa de bar com um quê de teoria da conspiração. Assim como Mr. Brown apresenta sua tese sobre Like a Virgin em Cães de Aluguel, aqui Selton Mello tenta provar que decifrou o “código” da filmografia de Tarantino, e que todos os seus filmes (com exceção de Jackie Brown) na verdade fazem parte de um só.

A conversa no bar segue os moldes das discussões de personagens tarantinescos em filmes como o próprio Cães de Aluguel, Pulp Fiction ou À Prova de Morte, emulando também o Sobre Café e Cigarros de Jim Jarmusch. A metalinguagem do roteiro e a montagem ágil deixam o resultado divertido, especialmente para os fãs do cinema de Tarantino.

2. Ed (2013), de Gabriel Garcia

Produzido a partir de um edital do Ministério da Cultura e de financiamento coletivo através de uma campanha de crowdfunding, a animação em 3D Ed levou três anos para ser finalizada. A demora é compreensível quando se vê o cuidadoso trabalho de animação gráfica envolvido, com atenção especial aos detalhes em cena. A fotografia azulada e triste tem como protagonista um improvável coelho em vias de cometer suicídio. Mas como ele chegou a esse ponto?

Em uma narrativa contada através de flashbacks, o diretor e co-roteirista Gabriel Garcia traz uma abordagem curiosa do personagem, sempre instigante. Entre vários prêmios e aparições em festivais nacionais e internacionais, o curta conquistou o Prêmio Canal Brasil no Anima Mundi de 2013, e por isso está disponível para exibição no site do canal. Vale a pena acessar e conferir, já que o vídeo não pode ser incorporado por aqui. Por enquanto, fiquem com o trailer.

3. Eu Não Quero Voltar Sozinho (2010), de Daniel Ribeiro

Com certeza a escolha mais óbvia desta lista, mas que não poderia ficar de fora. Afinal, o curta-metragem de Daniel Ribeiro, além de ser um sucesso de popularidade – atualmente, o vídeo no Youtube tem mais de 3 milhões de visualizações –, é um filme especial pelo modo com que trata temas como a descoberta da sexualidade e a deficiência visual. Daniel não precisa de muito: embora simples, Eu Não Quero Voltar Sozinho conta com roteiro e direção primorosos, e é beneficiado pela sintonia e boa interpretação de seu elenco.

A história de Léo, Gabriel e Giovana encanta pela sutileza e delicadeza com que é conduzida, e impressiona por saber abordar e retratar o público adolescente com respeito, anos-luz à frente de qualquer episódio de Malhação. O sucesso levou à conversão do curta em longa-metragem, que felizmente manteve a qualidade do original. Aliás, outro acerto de Daniel Ribeiro que vale a pena ser conferido é Café com Leite, de 2007, mais uma prova de seu talento e sensibilidade.

4. A Galinha Que Burlou o Sistema (2011), de Quico Meirelles

Ser filho de Fernando Meirelles tem lá suas vantagens: tendo ao seu dispor a máquina da O2 Filmes, a produtora do pai, Quico Meirelles pôde fazer muito mais do que um simples trabalho de conclusão de curso para sua formação em Audiovisual na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Claro que isso não tira o mérito de Quico; na verdade, A Galinha Que Burlou o Sistema mostra que o jovem pode ter uma carreira bem talentosa pela frente.

O curta conta a história de uma galinha que vive enclausurada numa granja industrial, e resolve desafiar o sistema em busca de um novo destino para si. Quico usa elementos diversos, como animações e inserções gráficas, para fazer sua denúncia ao modelo industrial da criação de animais. Apesar do tema pesado, a abordagem é carregada de humor – mesmo assim, os mais sensíveis talvez acabem se tornando vegetarianos depois de assistir, tal qual o diretor.

http://vimeo.com/46901412

5. A Janela Aberta (2002), de Philippe Barcinski

Antes de ingressar no universo dos longas-metragens, Philippe Barcinski passou um bom tempo experimentando em curtas, além de participar em produções para TV. Embora Palíndromo provavelmente seja sua obra mais incensada, considero o trabalho realizado em A Janela Aberta bem superior e mais interessante.

Com um tom de paranoia que chega a lembrar Edgar Allan Poe (em especial, O Coração Delator), o curta acompanha a história de um homem que, quando está prestes a dormir, fica com uma dúvida perturbadora: afinal de contas, ele fechou ou não a janela da sala? Enquanto ele tenta reconstituir os passos do seu cotidiano, em uma narrativa bem construída e com um excelente trabalho de montagem, o curta vai adentrando cada vez mais na mente obsessiva do protagonista, até chegar a uma sensacional conclusão.

http://vimeo.com/43940758

6. Jardim de Percevejos (2012), de Francis Madson

Representando o Amazonas na lista, Jardim de Percevejos é a primeira incursão do dramaturgo Francis Madson no cinema. Quem vê o resultado perturbador e cheio de personalidade, no entanto, dificilmente acreditaria que é o trabalho de um estreante.

Produzido através de uma oficina realizada no Circuito Até o Tucupi de 2012 e exibido no Amazonas Film Festival de 2013, Jardim de Percevejos conta a história de um ser híbrido (?) misterioso e sua relação angustiante com a vida, especialmente com questões como amor, sexo e desejo. O adjetivo pode ser bem clichê, mas a verdade é que a obra é mesmo visceral.

7. Muragens – Crônicas de Um Muro (2008), de Andrei Miralha e Marcílio Costa

Ainda na região Norte, Muragens – Crônicas de Um Muro é uma produção paraense, resultante de um projeto coordenado por Andrei Miralha, um dos principais nomes atuais da animação no Estado. Apesar de dirigido por ele, em parceria com Marcílio Costa, a animação conta com traços de diversos nomes da cena paraense, que colaboraram e produziram coletivamente o curta.

Ao som da boa trilha sonora de André Moura, Muragens pega um cenário real, o muro dos fundos do Cemitério da Soledade, em Belém, para apresentar pequenas histórias fictícias que retratam diversas facetas da cidade. As animações que vão surgindo no muro assumem um aspecto de crônicas, muitas vezes marcadas por um elemento nonsense. Não há uma versão na íntegra no Youtube, mas você pode acompanhar o curta dividido em duas partes logo a seguir.

http://www.youtube.com/watch?v=T_ZVK9D4Eg8

http://www.youtube.com/watch?v=y9SG_4lymQs

8. Recife Frio (2009), de Kleber Mendonça Filho

Antes de ganhar o mundo com o sensacional O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho já tinha uma considerável produção de curtas-metragens, como Vinil Verde, Eletrodoméstica e Enjaulado. Um dos seus maiores destaques, no entanto, é Recife Frio, um mockumentary que parte de uma premissa curiosa: e se um dia a capital pernambucana deixasse seu ar tropical de lado e virasse um lugar frio?

O céu ensolarado dá lugar a uma cidade sempre nublada e chuvosa, e a partir desse contexto Kleber tem a oportunidade de explorar novamente temas sociais constantes em sua filmografia, como a ascensão da classe média e o aspecto urbano de Recife. Ao mesmo tempo crítico e divertido, Kleber mostra porque é um dos nomes mais inteligentes do cinema brasileiro.

9. Saliva (2007), de Esmir Filho

Todo mundo já passou pela experiência do primeiro beijo, e todos os medos e dúvidas que o cercam. O trunfo de Esmir Filho é retratar esse momento com uma perspectiva sensorial e com requintes oníricos, transformando o que poderia ser um tema banal nas mãos de outro diretor. Assim como Daniel Ribeiro, Esmir é outro cineasta que mostra compreender bem as angústias juvenis.

Aqui, acompanhamos Marina, uma menina de 12 anos prestes a dar o primeiro beijo, e todo o turbilhão de sentimentos envolvidos que surgem na forma de simbolismos visuais orquestrados por Esmir Filho.

http://www.youtube.com/watch?v=FDq1pS8S3F4

10. Os Sapatos de Aristeu (2008), de René Guerra

De todos os filmes da lista, particularmente acho esse o mais emocionante. Aristeu é o nome de batismo de uma transexual de meia-idade recém-falecida. O corpo dela é arrumado por outras travestis para o velório, mas a família, formada pela mãe idosa e a irmã amargurada, decide enterrá-lo como homem. Uma verdadeira procissão de travestis se reúne para dar o adeus na casa da família de Aristeu.

Com uma fotografia em preto e branco melancólica e fazendo um excelente uso do silêncio em boa parte do curta, René Guerra levanta um universo de questões em um curto de espaço de tempo, com uma naturalidade e delicadeza que em momento nenhum descambam para o dramalhão ou o sentimentalismo exacerbado. O silêncio eloquente das personagens diz muito, e mostra como o preconceito ainda é um sentimento tão enraizado na sociedade, e tão forte e prejudicial que pode destruir completamente relações familiares, por maior que seja o amor envolvido.