O Brasil é um país que já parece uma ficção-científica, uma sociedade cujo funcionamento é tão difícil de explicar e compreender que nem grandes nomes do gênero como Asimov, Clarke ou Kubrick conseguiriam imaginá-la. Por isso, e pelo momento histórico delicado em que vivemos, é até apropriada a existência de uma produção como 3%, primeira série original e nacional da Netflix e que investe na temática da ficção-científica. O seriado apresenta uma distopia futura que na verdade tem muito a ver com o Brasil de hoje. Nesta temporada, a série apresenta boas ideias e conceitos, mas é prejudicada por alguns problemas.

Baseada numa ideia do roteirista Pedro Aguilera – e que começou com um episódio-piloto de vinte e poucos minutos veiculado no YouTube em 2011 – a série se passa num futuro indeterminado. No meio da Amazônia, que parece ter virado um deserto, existe uma enorme favela e, anualmente, os jovens que completam vinte anos de idade tentam ascender da pobreza – literalmente, pois sobem uma escadaria até chegar a um prédio que lembra algo da arquitetura de Brasília – para disputar o Processo, uma grande seleção competitiva do qual apenas 3% dos candidatos serão aprovados. Os eleitos ganham o direito de viver num lugar paradisíaco chamado Maralto e de fazer parte da elite.

Em que consiste o Processo? Como um Big Brother Brasil dos infernos ou uma versão extrema de uma seleção de emprego, o Processo inclui avaliações psicológicas, provas de inteligência – como a da montagem dos cubos, que acaba não convencendo muito bem acerca do seu propósito – e até algumas de sobrevivência. Intrigas e terror psicológico começam a exercer pressão sobre os jovens personagens, tudo sob o olhar atento do coordenador do Processo, o misterioso Ezequiel (João Miguel).

A maior qualidade da série é realmente a sua capacidade de captar o nosso momento, sob um contexto de ficção-científica. O elenco da série é bem diverso – há vários personagens negros e um dos principais, Fernando (Michel Gomes), é deficiente físico. Essa diversidade é usada de forma pontual para fazer pequenos comentários sobre o nosso contexto atual de racismo e opressão – por exemplo, quando uma das entrevistadoras pergunta a uma candidata negra “quando foi a última vez que você lavou o cabelo?”, ou quando o pai de um dos personagens, também negro, defende o Processo a todo o custo, até mesmo por cima das objeções de filho, mais qualificado para opinar. Ali se ouve a velha e comum conversa do “oprimido defendendo quem o oprime”. E, claro, os organizadores do Processo falam de “mérito” o tempo todo, expondo o tema de “meritocracia” muito levantada no nosso país em tempos recentes.

Os roteiristas da série e seus diretores – dentre os quais se inclui César Charlone, diretor de fotografia em Cidade de Deus (2002) e diretor de O Banheiro do Papa (2007) – são quase sempre felizes nessas referências não veladas ao nosso momento histórico, mas acertam menos justamente onde mais importa, os personagens, a coisa mais importante numa série. Os personagens de 3% até são bem delineados, de modo geral: o problema é que frequentemente a trama os obriga a agir de maneira estranha e forçada. O caso da personagem Michele (Bianca Comparato) é emblemático: ela, que se presume, deveria ser a heroína da série, é forçada a cometer um ato extremo logo no primeiro episódio e por causa disso nunca consegue recuperar a simpatia do telespectador. Além disso, seu plano de vingança mais à frente na temporada não faz muito sentido. A personagem Joana (Vaneza Oliveira) acaba roubando a cena e parecendo mais protagonista do que Michele.

E esse é apenas um dos problemas. O quarto episódio, por exemplo, o dos personagens trancados numa luta brutal, depende de uma mudança muito forte de comportamento: um sujeito que parece racional vira sádico rapidamente, pelo bem da trama. O personagem Ezequiel também sofre com isso, ora se mostra manipulador e completamente a serviço do Processo, ora se mostra disposto a arriscar tudo por uma razão não muito convincente. E o que dizer do romance forçado entre Michele e Fernando? O casal sofre da síndrome do Esquadrão Suicida, ou seja, começa a trocar palavras de intimidade e promessas de vida juntos mesmo tendo passado um tempo bem curto juntos. É como se os roteiristas decidissem que a série precisava de um romance e resolveram forçar a barra para estabelecer um.

Estruturalmente, 3% segue o formato de Lost, com a maioria dos episódios sendo dedicados a um personagem em especial, com direito a flashbacks sobre o passado dessa pessoa – é até possível se ouvir um barulhinho estilo “Rrruummm” quando esses flashbacks vão começar. Essa estrutura funciona e, de modo geral, 3% é fácil de “maratonar”, principalmente porque a Netflix disponibiliza todos os 8 episódios de uma só vez. Pode estar longe de ser uma série irretocável, mas nunca chega a se tornar realmente aborrecida ou difícil de ver.

Em termos de produção, os efeitos visuais são eficientes e a trilha sonora e a direção de arte fornecem a atmosfera necessária numa produção que se mostra claustrofóbica quase o tempo todo. A maior parte das cenas é interna, o que sem dúvida ajuda a manter o orçamento de uma produção de ficção-científica sob controle – não, nesta temporada ainda não dá para vermos o Maralto. Porém, o fato de os diretores dos episódios abusarem dos ângulos inclinados (ou “holandeses”, como dita a nomenclatura técnica) é um problema. O que começa como uma invenção visual para ressaltar a estranheza das situações se transforma num cacoete visual ao começar a ser usado com muita frequência e sem propósito aparente.

Mesmo assim, entre erros e acertos, 3% se mostra interessante o suficiente para se querer acompanhar. Os problemas desta temporada inicial podem ser corrigidos na próxima, e de minha parte torço por isso. O conceito básico é interessante e, como produto cultural, 3% é importante para nos proporcionar um entretenimento que reflita sobre problemas sérios e reais do Brasil de hoje. E é para isso que serve a ficção-científica: menos para falar sobre o futuro, e mais sobre o presente. Para o ano que vem, mais cuidado com personagens e situações – e menos câmera torta – já deverão representar melhoras significativas.