Quem se debruça sobre os registros da história do cinema comumente esbarra em escritos que dão conta de um momento em que a hoje popularmente chamada “Sétima arte” era considerada um “primo pobre” do teatro: um espetáculo divertido, porém menor, que pouco tinha a ver com uma linguagem artística elaborada, fruto de intenso trabalho intelectual.

Validada a importância do cinema na cultura, hoje vivemos uma situação curiosa. Muitos são os que encaram os filmes de caráter mais artístico como insalubres, produções voltadas para um público intelectual (ou pseudointelectual), e que falta a esses filmes aquele ingrediente essencial do primeiro cinema: ser divertido e fazer sonhar.

Pelo menos no caso de “Amadeus”, esse pensamento não poderia estar mais equivocado. Poucos filmes conseguem o equilíbrio perfeito que ele apresenta ao gerar um envolvimento tão fácil com o público, tantas gargalhadas e tantos momentos de tensão que o cinema tradicional norte-americano trabalha com primazia para dar o público (mesmo que os filmes eventualmente nem sejam bons), e, ao mesmo tempo, ser tão sofisticado e bem feito em todos os aspectos. Curiosamente, essa característica de “Amadeus” tem um encaixe perfeito com o personagem que o filme livremente retrata: o compositor de música clássica Wolfgang Amadeus Mozart.

Na trama de “Amadeus”, Mozart é um jovem tolo, alegre e inconsequente, mas dotado de um dom fenomenal para tocar e compor. Seu talento desperta uma inveja incontrolável por parte de Antonio Salieri, compositor italiano que serve de narrador para o filme. Apesar de ter um roteiro bastante fictício, “Amadeus” dá conta de expor o quão único foi o talento de Mozart, além de sua ousadia ao sair da zona de conforto e criar obras musicais desafiadoras tanto tecnicamente quanto em relação às temáticas, aproximando do público mais humilde (e tendo uma ótima recepção) um tipo de música geralmente exposta apenas para a elite.

Outro ponto interessantíssimo da narrativa de “Amadeus” é o desenrolar da inveja de Salieri. Esse sentimento é exposto de maneira complexa, num misto de admiração extrema e frustração por não ter a capacidade de ser tão brilhante quando Mozart (coisa que ninguém jamais conseguiu, aliás). Nesse sentido, a atuação de F. Murray Abraham como o italiano é magistral, fazendo com que o público tanto o deteste como se identifique com ele.

Falando em atuação, o que dizer de Tom Hulce como Mozart? Só com um olhar de criança e uma gargalhada histérica, o ator já atinge níveis mais altos de interpretação que muitos “oscarizados” mundo afora. Ele também brilha ao encontrar o tom certo de contraponto de seu personagem com o de Salieri, seu completo oposto que, ao mesmo tempo, parece sua cara metade. Um é sério, mais velho, contido, enquanto que o outro é completamente louco, jovial, espontâneo, e um necessita de algo que o outro tem. As nuances que Hulce apresenta num segundo momento da trama, quando Mozart passa por dificuldades e o filme assume os ares de uma trágica ópera, mostra a versatilidade do ator. Não foi por acaso que tanto Hulce quanto Abraham concorreram ao Oscar de Melhor Ator por esse filme em 1985!

A atenção à direção de arte e fotografia é outro aspecto que não pode ser ignorado em “Amadeus”. O cuidado com a reconstituição de época está em cada pequeno detalhe de cenário e figurino, belamente captado pela fotografia suave, calcada nos tons pastéis tão caros aos filmes de época. Dos chiquérrimos salões aos becos mais nojentos do século XVIII, tudo que aparece no espaço da tela é fruto de trabalho meticuloso.

Por fim, não se pode deixar de frisar o ótimo momento de Milos Forman ao dirigir “Amadeus”. Do cuidado com os detalhes técnicos ao desenvolvimento de um produto sofisticado e, ao mesmo tempo, com uma levada popular de “filmão americano”, Forman prova que é possível sim fazer um filme “Cult” para agradar a todos, qualidade esta que garante o lugar de “Amadeus” como um clássico instantâneo desde seu lançamento em 1984.

NOTA: 10,0