Eis que, de repente, ele surge: em Paris, Texas, o diretor alemão Wim Wenders inicia seu filme mostrando uma visão aérea de uma paisagem desértica americana, e do nada o protagonista aparece, caminhando. Vemos um homem barbudo e estranho, usando um terno escuro empoeirado e um boné vermelho na cabeça. Nas mãos, ele traz um garrafão de plástico, vazio. Ele tenta enchê-lo de água num posto de gasolina próximo, desmaia e acaba sendo levado a um médico.

O nome desse estranho homem é Travis, e ele é interpretado por Harry Dean Stanton. Apesar da aparência, ele parece bem, embora não fale. Ele também não se lembra muito bem do seu passado, ou assim parece. Não demora muito e seu irmão, Walt (Dean Stockwell), é avisado sobre Travis. Walt, que vive em Los Angeles, passou anos sem ver o irmão e a jovem esposa dele, Jane (Nastassja Kinski), que também desapareceu. Ele parte para buscar Travis e o estranho homem não se mostra um viajante tranquilo: incapaz de convencê-lo a ir de avião até Los Angeles, Walt não tem escolha a não se levar seu irmão de volta de carro.

Com o tempo Travis começa a conviver com a esposa do irmão, Anne (Aurore Clement) e seu filho Hunter (Hunter Carson). Após o sumiço de Travis, Hunter foi criado por Walt e sua mulher como um filho. Após estabelecer uma relação de confiança com o filho, Travis decide partir com o menino em busca da mãe dele. O paradeiro dela, e os motivos pelos quais o casal se separou de maneira tão traumática, sustentam a narrativa até os momentos finais, emocionantes e inesquecíveis.

Wim Wenders dirige essa história – com roteiro do dramaturgo e ator Sam Shepard – enfatizando os espaços vazios e inserindo seus personagens em locações amplas, mesmo nas cenas urbanas. A paisagem desértica do início não é uma paisagem qualquer. É aquela que aprendemos, após décadas de filmes, a reconhecer dos velhos faroestes de John Ford. A própria trilha sonora, composta pelo guitarrista Ry Cooder, remete ao faroeste. Porém, enquanto John Wayne partia movido pelo preconceito à procura da sobrinha em Rastros de Ódio (1956), a jornada do cowboy Travis é uma de redenção. E o protagonista de Paris, Texas possui várias características em comuns com o arquétipo do cowboy solitário que vaga pelas planícies nos filmes do gênero americano por excelência.

Afinal, Travis fala pouco, calça botas e é antiquado, preferindo andar a dirigir, e dirigir a voar. É um personagem inquieto – na primeira noite dele na casa do irmão, ele engraxa todos os sapatos da família, mostrando como caminhar é muito importante para ele. Em pelo menos uma ocasião o filme usa essa natureza representativa do protagonista para criar humor, como na cena em que ele experimenta várias roupas, com a ajuda da empregada da família, e tenta decidir qual delas é a mais adequada a um pai. Obviamente, ele acaba escolhendo a mais ridícula…

Vale ressaltar o quanto é especial a atuação de Harry Dean Stanton como Travis. O ator sempre foi marcado como um coadjuvante e é um daqueles rostos que o espectador constantemente vê em filmes americanos desde o final dos anos 1960 – Stanton trabalha até hoje e se tornou uma figura cult em anos recentes. Em Paris, Texas Wenders, no entanto, dá a ele a chance de protagonizar e o resultado é maravilhoso. A composição do ator é sutil: em vários momentos ele parece não estar fazendo nada, em outros ele deixa transparecer indícios de uma personalidade forte e não muito agradável, como quando diz a Anne que a sua esposa “deixou de ser mãe para o seu filho há muito tempo”. É uma atuação magistral, mas que no filme ainda encontra uma correspondência no brilhante trabalho do garotinho Hunter Carson, simpático e absolutamente natural. Algumas das melhores cenas do filme acontecem quando Stanton e Carson contracenam.

Em dado momento do filme, os personagens veem imagens gravadas em Super-8 do passado, quando todos eram felizes e Travis vivia ao lado da sua esposa e filho. Se as imagens são tão importantes para a história, apropriadamente Paris, Texas também é um trabalho visualmente muito interessante. Merece destaque o trabalho de fotografia do alemão Robbie Müller, que capta imagens do deserto e algumas das mais belas auroras e crepúsculos do cinema.

O trabalho com cores também é revelador – o figurino do filme é usado para, sutilmente, revelar relações emocionais entre os personagens. Por exemplo, o vermelho é a cor mais identificada com Travis, graças ao seu boné no início. Quando ele e Hunter partem na sua jornada, o menino também começa a usar vermelho – vale a pena notar que um carro importante para a trajetória deles também terá a cor vermelha. Já na cena mais importante do filme, a da conversa entre Travis e Jane, separados por um espelho, ambos estão vestindo preto, representando a tragédia do relacionamento de ambos.

Aliás, Wim Wenders frequentemente coloca seu protagonista separado das demais pessoas nos seus enquadramentos. Vemos Travis no banco de trás do carro dirigido por Walt, vemos Travis e seu filho separados por uma rua numa cena divertida, e no final, o já mencionado espelho o separa de Jane. Se a essência do filme pode ser representada visualmente, essa representação ocorre no momento em que os rostos de Travis e Jane se sobrepõem durante a devastadora conversa entre eles. Wenders não tem pressa: os planos são longos, acompanhando as mudanças no rosto de Nastassja Kinski ou o longo texto que Harry Dean Stanton tem que dizer, de costas para a sua ex-esposa. Afinal, embora seja um cowboy pós-moderno, com sensibilidade anos 1980, há certas coisas que o protagonista de Wenders não consegue fazer.

Quando os dois rostos se sobrepõem, fica claro que Paris, Texas é sobre pessoas que se perdem e, por alguns breves momentos, voltam a se reencontrar. Travis anda por aí com uma foto de um pedaço de deserto, diz que é uma imagem da sua propriedade e que ela foi tirada na cidade de Paris. E realmente existe uma Paris no Estado americano do Texas – “perto do Red River”, ele diz, tornando clara a referencia ao cowboy ao remeter ao clássico faroeste Rio Vermelho (1948). Apesar da evolução da sociedade e de todas as mudanças culturais, o espaço e as distâncias entre as pessoas ainda são tão grandes como na época do Velho Oeste. É isto que Wim Wenders realmente parece mostrar no seu filme, usando imagens da iconografia americana para contar uma história que, na verdade, é universal. E essas distâncias só conseguem ser vencidas com muita caminhada. Paris, Texas, no fundo, é um filme sobre um homem que precisa andar muito, até conseguir reunir as forças para pedir perdão.

Nota: 10